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Lícita ou
não?
OS
CRISTÃOS E A PROPRIEDADE PARTICULAR
Dom Estevão Bettencourt –
Pergunte e Responderemos 468 – maio 2001
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Em síntese: A
propriedade particular é lícita a todo homem por direito natural, desde que
seja honesta. A Igreja ensina esta doutrina, acrescentando, porém, que sobre
toda propriedade particular pesa uma hipoteca social - o que quer dizer que o
proprietário deve procurar beneficiar o próximo com os bens que Deus lhe
concede. A Tradição da Igreja acentuou fortemente a necessidade de que o
cristão esteja vigilante para não se apegar a bens materiais que embotariam o
coração, indispondo-o para os bens transcendentais. O voto de pobreza professado
pelos Religiosos depende de um carisma próprio, que Deus dá livremente, sem que
isto impeça o cristão legítimo proprietário de chegar à santidade.
Via e-mail a
revista PR recebeu a seguinte mensagem:
«O cristão e os bens
materiais: Me é difícil, muitas vezes, distinguir o correto ensinamento cristão
com relação ao uso dos bens materiais. Conhecemos passagens em que Cristo faz
críticas aos ricos (cf. Mt 19, 26-29 - O Jovem Rico: é mais fácil um camelo
passar pelo fundo de uma agulha que um rico entrar no Reino de Deus; cf. Lc 12,
16-21 - a parábola do homem rico, que pensava em aumentar suas posses; cf. Lc
12, 22- 34 - as vãs preocupações). Também aprendemos que a Igreja prega a
pobreza como virtude, com grandes exemplos, pois Jesus Cristo, mesmo sendo Deus,
Filho de Deus Todo-Poderoso, preferiu nascer pobre numa manjedoura, entre
pastores e animais, ter como pai e mãe nesta Terra gente simples, ter um ofício
humilde de carpinteiro, etc. Por isso, santos e mestres da Igreja abraçaram a
pobreza como ideal, como S. Francisco de Assis, S. Francisco de Paula, Madre
Teresa de Calcutá, etc.
Entretanto, também
ouvimos dizer e lemos em livros de História que o Judaísmo considera natural o
enriquecimento material de seus fiéis (vide a condenação da Igreja Católica à
prática da usura praticada pelos judeus no séc. XVI). Por sua vez, nossos
irmãos Calvinistas/Presbiterianos, sendo também cristãos como nós, Católicos,
pregam que a riqueza material é dom de Deus e desejável (cf. WEBER, Max, Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo, Ed. Presença, 4a ed.,
1996).
A organização de
leigos católicos chamada T.F.P. (Tradição, Família e Propriedade) defende a
posse da propriedade privada como um dos pilares da Civilização Cristã. À
exceção dos que abraçam a pobreza na vida religiosa, para melhor dedicarem-se a
Deus e à Igreja, não consigo perceber que virtude possa haver em o cristão
leigo neste mundo desejar ser pobre, padecer privações, não poder alimentar-se
corretamente, não ter condições de pagar um tratamento médico adequado quando
adoece, não poder custear uma boa escola para seus filhos, depender da caridade
alheia, etc. Será pecado contra as leis de Deus desejar progredir materialmente
para poder oferecer maior conforto à família, prover saúde e boa formação para os
filhos, empregar um número maior de pessoas em seus negócios, fazer mais
caridade, pegar mais dizimo à Igreja e possibilitara evangelização de um número
maior de irmãos? Lembro-me que o Bom Samaritano (cf. Lc 10, 30-35) precisou
dispor de boa quantia para pagar hospedagem e tratamento ao homem ferido. José
de Arimatéia (cf. Lc 23, 50-53) e Nicodemos (cf. Jo 19, 39) eram homens ricos e
providenciaram um sepultamento digno ao Senhor. Portanto, pergunto: É pecado
ser rico, ou desejar enriquecer? Como deve agir o cristão leigo em relação aos
bens materiais?».
Em resposta dizemos
que a propriedade particular é lícita, desde que honesta e utilizada em favor
do proprietário e do próximo carente. Estas proposições de direito natural têm
sido ensinadas pela Igreja através dos tempos, enfrentando correntes diversas
de pensamento a respeito, como se verá a seguir.
1. O Testemunho Bíblico
O direito de
propriedade particular é tão condizente com a Lei de Deus que esta chega a proibir
a cobiça desregrada de bens alheios: "Não desejarás a mulher do teu
próximo, nem sua casa, nem seu campo, nem seu servo ou sua serva, nem seu boi,
nem seu asno, nem coisa alguma que lhe pertença" (Dt 5, 21, citado na enc.
"Rerum novarum").
A S. Escritura, no
Antigo Testamento, apresenta o exemplo de numerosos justos (Abraão, Isaque,
Jacó, Davi, Jó...) que, em meio mesmo às riquezas, se tornaram amigos de Deus.
No Novo Testamento, o
Senhor reconheceu a legitimidade das posses temporais, anunciando a salvação ao
rico publicano Zaqueu (cf. Lc 19, 7-10), permitindo que mulheres abastadas O
servissem em seus itinerários apostólicos (cf. Lc 8, 1-3), mantendo boas
relações com José de Arimatéia e Nicodemos (cf. Jo 19, 38s)... Cristo ensinou a
praticar a esmola e a beneficência corporal (dar de comer, de beber, de
vestir...), o que supõe naturalmente a posse de bens materiais e o direito de
dispor deles (cf. Mt 25, 31-46; Lc 21,1-4). Note-se outrossim que S. João
Batista, ao pregar penitência, não impunha aos soldados renunciassem ao seu
salário, mas apenas queria que se contentassem com o que ganhavam (cf. Lc 3,
10-14).
Verdade é que um certo
desapego é vivamente recomendado nos escritos do Novo Testamento, porque
favorece a liberdade do coração e torna o cristão mais apto para cultivar os
valores espirituais e definitivos.
É por isto que, quando
um jovem perguntou a Jesus o que devia fazer de bom para possuir a vida eterna,
o Senhor lhe apontou primeiramente a observância dos mandamentos e, a seguir,
lhe deu o conselho: "Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, e dá
aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me" (Mt 19,
16-21). Diante desta orientação, o jovem recuou triste, "porque era
possuidor de muitos bens"! (19, 22). O fervor arrefeceu por causa do apego
à matéria.
O apego às riquezas,
que obceca e amesquinha o homem, é condenado por Jesus com palavras veementes:
"É mais fácil um
camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de
Deus" (Mt 19, 24).
São Paulo apregoa a
simplicidade de vida aconselhada por Jesus e mostra os perigos da avareza:
"Nada trouxemos
para o mundo, nem coisa alguma dele podemos levar. Se, pois, temos alimento e
vestuário, contentemo-nos com isso. Os que se querem enriquecer, caem em
tentação e ciladas, e em muitos desejos insensatos e perniciosos, que mergulham
os homens na ruína e na perdição. Porque a raiz de todos os males é o amor ao
dinheiro, por cujo desenfreado desejo alguns se afastaram da fé, e a si mesmos
afligem com múltiplos tormentos" (1Tm 6, 7-10).
Uma das razões
ponderosas da sobriedade de vida é a consciência que o cristão há de ter, de
que é peregrino na terra, a caminho da vida definitiva; a qualquer momento
podem cair os véus que o separam dos valores eternos, de modo que o cristão
deve estar sempre livre para deixar tudo com prontidão. É o que incute a bela
passagem de São Paulo em 1Cor 7, 29-31:
"Eis o que vos
digo, irmãos: o tempo se fez breve. Resta, pois, que aqueles que têm esposa,
sejam como se não a tivessem; aqueles que choram, como se não chorassem;
aqueles que se regozijam, como se não se regozijassem; aqueles que compram,
como se não possuíssem; aqueles que usam deste mundo, como se não usassem
plenamente. Pois passa a figura deste mundo".
Note-se: o Apóstolo
não diz que o tempo é breve, mas... que se fez breve... Fez-se breve, porque,
com a vinda de Cristo, entrou neste mundo o Reino de Deus inicial com seus
valores eternos. Por conseguinte, não há mais tempo a perder; o tempo tornou-se
pouco para atender à grandeza do Eterno presente. Daí a recomendação de uma
vida, tanto quanto possível, desembaraçada dos vínculos temporais, "pois
passa a figura deste mundo".
Vejamos agora
2. A Tradição da Igreja
Muito interessante é
uma homilia de Clemente de Alexandria (+ pouco antes de 215) intitulada:
"Que rico pode ser salvo?". Pode-se dizer que contém o cerne da
sistematização da doutrina social cristã. Clemente aí comenta as palavras de
Jesus: "É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um
rico entrar no Reino de Deus" (Mt 19, 24); afirma que as riquezas são
dadas ao homem pela munificência de Deus bom; como tais, não são nem boas nem
más; é o homem que lhes dá a sua qualificação ética. Não são as riquezas que
precisam de ser destruídas, mas os vícios do coração, que provocam a avareza
dos que possuem, e a cobiça dos que não possuem. O rico vem a ser um
usufrutuário dos dons de Deus.
Por conseguinte, a
propriedade particular é legítima; será moralmente má no caso de ser objeto de
ganância e avareza. A mais importante reforma que o homem possa e deva fazer, é
a do seu coração.
A tese de Clemente
ficou definitiva na Tradição cristã. Os escritores subsequentes acentuarão
principalmente o combate à cobiça desregrada e à ambição, usando expressões
altamente significativas, que podem deixar o leitor surpreso; incutiam a
vivência do Evangelho numa sociedade que se ressentia ainda de vestígios do paganismo.
Entre outros, no
século IV destaca-se São Basílio, bispo de Cesaréia (+379), que, além de
pregar justiça e senso humanitário, deu o exemplo: às portas de Cesaréia,
construiu uma nova cidade, que o povo chamava "a Basilíada", assim
apresentada pelo bispo a Elias, governador da Capadócia:
"Dir-se-á que
prejudicamos os negócios públicos, erguendo ao nosso Deus uma casa de oração,
magnificamente construída, tendo em seus arredores habitações, das quais uma
liberalmente é reservada ao chefe; as outras são inferiores e destinadas,
conforme a sua condição, aos servidores de Deus, utilizáveis igualmente por
vós, magistrados, e por vosso cortejo. A quem prejudicamos por construir
abrigos para os estrangeiros, para as pessoas em trânsito, ou para aquelas que
precisam de reconforto, para os enfermeiros, os médicos, para os animais de
carga com os seus condutores? Para manter tais estabelecimentos é indispensável
a colaboração prestada pelos diversos ofícios... São portanto necessárias
outras casas adequadas às indústrias; e há muitas outras coisas que contribuem
para tornar o lugar agradável" (L. 74).
Havia nessa cidade um
abrigo para pessoas idosas, um hospital, com uma ala reservada às doenças
contagiosas, e a distribuição de sopa popular.
Basílio se insurgiu
contra a ganância egoísta em numerosos textos:
"Possuir mais do
que o necessário é prejudicar os pobres, é roubar.
"Quem despoja das
suas vestes um homem, terá nome de ladrão. E quem não veste a nudez do mendigo,
quando o pode fazer, merecerá outro nome? Ao faminto pertence o pão que tu
guardas. Ao homem nu, o manto que fica nos teus baús. Ao descalço, o sapato que
apodrece na tua casa. Ao miserável, o dinheiro que tu guardas enfurnado"
(Homília 6, 7).
Santo Agostinho (+430) é, inegavelmente, um dos maiores gênios da humanidade. Os seus
escritos se destacam não só pela profundidade do conteúdo, mas também pela
elegância despretensiosa e simples de sua forma.
Eis notável espécime
de sua doutrina relativa a ricos e pobres:
"Vemos às vezes
que um rico é pobre, e o pobre pode oferecer-lhe seus préstimos. Eis, chega
alguém à beira de um rio, e, quanto tem de posses, tem de delicado: não
conseguirá atravessar; se tira a roupa para nadar, teme resfriar-se, adoecer,
morrer... Chega um pobre, mais robusto e preparado. Ajuda o rico a atravessar,
faz esmola ao rico.
Portanto, não se
considerem pobres somente os que não têm dinheiro. Observe cada um em que é
pobre, porque talvez seja rico sob outro aspecto e possa prestar ajuda. Talvez
possas ajudar alguém com teus braços e até mais do que se o ajudasses com teu
dinheiro. Aquele lá precisa de um conselho e tu sabes dá-lo; nisto ele é pobre
e és rico, e então nada tens a perder; dá-lhe um bom conselho e faze-lhe tua
esmola.
Neste momento, irmãos,
enquanto falo convosco, sois como mendigos diante de Deus. Deus é quem nos dá,
e nós damos a vós; todos recebemos dele, o único rico.
Assim procede o corpo
de Cristo; assim se entrelaçam seus membros e se unem na caridade e no vínculo
da paz, quando alguém possui e sabe dar a quem não possui. No que tens, és
rico; e é pobre quem não tem isso.
Amai-vos, pois, e
querei-vos bem. Não cuideis apenas de vós mesmos, pensai nos necessitados que
vos rodeiam. E, embora isto acarrete fadigas e sofrimentos nesta vida, não
percais a coragem: semeai nas lágrimas, colhereis na alegria. Pois não é assim,
irmãos meus? O agricultor, quando lavra a terra e põe as sementes, não está às
vezes receoso do vento frio ou da chuva? Olha o céu e o vê ameaçador; treme de
frio, mas vai em frente e semeia, pois receia que, esperando um dia sereno,
passe o tempo e já não possa semear. Não adieis vossas boas obras, irmãos!
Semeai no inverno, semeai boas obras mesmo quando chorais, pois 'quem semeia
nas lágrimas, colhe na alegria'" (Comentário ao SI 125).
O S. Doutor desmascara
a eventual soberba e autossuficiência de quem possui, e, de maneira suave e
persuasiva, incita seus ouvintes ao amor fraterno, que é o cume da perfeição.
São Pauiino de Nola
(+431) é outra figura notável. Nascido em Bordéus (França), exerceu importantes
cargos civis antes de ser batizado em 391. Vendeu então seus bens,
distribuindo-os aos pobres; ao converter-se, foi seguido por sua esposa
Terásia, com a qual passou a viver vida retirada do mundo. Foi ordenado
presbítero em 394, e em 409 tornou-se bispo de Nola (Itália Meridional). Também
este escritor se preocupou com a temática "riqueza-pobreza", que
assim explana num de seus sermões relativo ao óbolo da viúva (Mc 12, 41-44):
"Lembremo-nos, ainda,
daquela viúva que, despreocupada com os seus, conforme atesta o próprio Juiz,
e, pensando unicamente no futuro, deu aos pobres tudo o que lhe restava de
alimento. Outros concorreram com o excesso de sua abundância; ela, porém, mais
pobre talvez que muitos pobres, tendo por única fortuna duas moedas; mais rica,
entretanto, na alma que todos os ricos, avara dos tesouros celestes, esperando
unicamente os benefícios da recompensa eterna, entregou tudo que possuía dessa
fortuna que sai da terra e para ela retorna. Deu o que tinha, para possuir o
que não via; deu o corruptível, para adquirir a imortalidade. Esta pobre não
fez pouco caso da economia disposta e ordenada por Deus, acerca do crédito
futuro. Por isso, o Provisor não se esqueceu dela e, como juiz do mundo, já
antecipou a sua sentença. Elogiou no Evangelho a quem iria coroar no juízo
futuro.
Emprestemos a Deus dos
seus próprios dons. Nada possuímos sem auxílio, uma vez que nem existir podemos
sem sua vontade. Que poderemos considerar como nosso, se, por uma dívida
especial e imensa, nós mesmos não somos nossos? Pois não só fomos feitos por
Deus, mas também resgatados. Alegremo-nos, porque fomos resgatados por um
grande preço, isto é, pelo sangue do próprio Senhor".
O autor lembra, desta
maneira, a importância de um coração puro, livre de qualquer apego desregrado.
Quem possui tal coração, intui valores que os olhos da natureza são incapazes
de perceber.
Passemos a
3. O Magistério da Igreja
Prolongando a voz das
Escrituras, o magistério da Igreja, através dos séculos, rejeitou, como
errôneas, sucessivas tendências a negar ou a restringir exageradamente o
direito de propriedade.
Registrou-se, por
exemplo, na antiguidade e na Idade Média, o surto periódico de concepções
pessimistas ou dualistas que tinham a matéria e o uso dos bens materiais na
conta de algo de mau ou de satânico; assim o Ebionitismo (de ebion, pobre, em
hebraico) no séc. II, o Maniqueísmo nos séc. III/IV, as correntes dos Cátaros,
dos Valdenses e dos Joaquimitas, do séc. XI ao séc. XIII.
Verificaram-se também,
entre os cristãos, tendências socialistas e comunistas anarquistas, que a
Igreja reprovou: no séc. II, por exemplo, o gnóstico Epifânio preconizava o comunismo
integral, apelando para a justiça de Deus, como se esta tivesse outorgado a
todos os homens os mesmos direitos sobre toda e qualquer coisa; no séc. III
apareceram os "Apostólicos" ou "Apóstatas" (= os que
renunciavam), os quais se vangloriavam de imitar os Apóstolos, nada possuindo.
No século XIV uma
corrente mística franciscana exagerava a pobreza de Cristo e dos Apóstolos,
negando-lhes o direito de possuir ou mesmo de usufruir, fosse em particular,
fosse em comum..., negando- lhes, por conseguinte a liceidade de se servir de
bens materiais, de os vender, comprar ou trocar...; tais teses provocaram
explícita declaração por parte do Papa João XXII:
"Será considerado
herege todo aquele que sustentar que Jesus Cristo e seus Apóstolos, em relação às
coisas de que se serviram, não praticaram senão o mero uso de fato (não de
direito); daí se poderia concluir que tal uso era ilícito, conclusão esta que
seria blasfematória" (Constituição Quia quorumdam de 10 de novembro de
1323; cf. outrossim a bula Cum inter nonnullos de 12 de novembro de 1323).
Tal é o chamado erro
da "pobreza absoluta de Cristo".
No séc. XVI os
Anabatistas provocaram a guerra dos camponeses na Alemanha (1522-1525), pregando
com anarquia e pilhagem a vinda de novo Reino de Deus, em que haveria comunhão
de bens.
Nenhum desses
movimentos contrários à propriedade particular prevaleceu no Cristianismo
porque, em última análise, significavam a negação da Encarnação, ou seja, da
santificação de tudo que há de humano e material, pela vinda do Filho de Deus a
este mundo; também a matéria foi, do seu modo, objeto da Redenção, ensina o
mistério da Encarnação; em consequência, toca a todo indivíduo humano não
somente o direito, mas também o dever, de a dominar e a fazer concorrer para a
glória de Deus.
Os Papas, a partir de
Leão XIII, vêm com insistência reafirmando o tradicional conceito cristão de
propriedade, tendo em vista, de um lado, as modernas teorias do socialismo e
do marxismo, que querem absorver no totalitarismo econômico e político o
indivíduo e seus direitos, de outro lado, o liberalismo
econômico, que leva ao capitalismo selvagem e à opressão.
O principal problema
contemporâneo versa sobre os bens produzidos por colaboração do capital do
empresário e do trabalho dos operários. Lembram os Papas que qualquer
exclusivismo, seja por parte dos capitalistas, seja por parte dos
trabalhadores, se torna injusto; preconizam que o trabalho não seja considerado
como simples mercadoria e que o salário respectivo exprima a dignidade pessoal
do operário, facultando a este a constituição e o desenvolvimento da família e
possibilitando-lhe a elevação do padrão de vida.
As encíclicas papais
também se referem, com certa frequência, ao papel dos governos civis perante a
propriedade particular. - Lembram que não é lícito ao Estado frustrar, como
quer que seja, o uso do direito à posse individual, pois isto seria violar a
personalidade humana. Toca, porém, aos legisladores civis regrar o emprego dos
bens particulares em vista do bem comum. Isto pode ser feito, por exemplo,
retirando do domínio particular alguns bens que interessam à segurança pública
ou que confeririam aos seus proprietários um poder exagerado. São palavras de
Pio XI:
"Há certas
categorias de bens que - é razoável pensar - devem ser resenhados à
coletividade, desde que confiram poder econômico tal que, sem perigo para o bem
público, não podem ser deixados nas mãos de cidadãos particulares"
(Quadragesimo anno).
Essa socialização,
porém, só é desejável quando realmente exigida pelo bem comum ou como único
meio eficaz de remediar a um abuso ou de assegurar a ordem das forças
produtivas de um país.
A socialização ou
nacionalização assim concebida é recurso extremo, pois contém a ameaça de
absolutização do Estado. Este pode, antes de estatizar, promover a propriedade
coletiva em mãos de sociedades controladas por leis; nestas sociedades grande
número de pessoas, inclusive os funcionários e operários das empresas, podem tornar-se
co- proprietários.
Na verdade, a
propriedade particular não é baseada apenas em razões de ordem religiosa; ela
tem seu fundamento também no direito natural. Donde
4. Argumentos Filosóficos
1) A propriedade particular
é exigência da natureza intelectual do homem. Este pode prever o seu futuro, à
diferença dos animais irracionais, que se contentam com a satisfação de suas
necessidades imediatas. Ora, para subsistir hoje e no tempo futuro, o homem
precisa de se apropriar de bens naturais (bens de consumo e igualmente bens de
produção).
Este argumento vale
especialmente para os genitores, responsáveis por uma família. Os pais têm a
obrigação de cuidar da alimentação, do vestuário e da educação dos filhos;
seria antinatural que o Estado o fizesse em lugar dos genitores. Por isto,
estes têm o direito de adquirir e possuir os bens necessários ao cumprimento de
tais deveres; a solicitude materna e paterna lhes permite também transmitir
esses bens, como herança, às gerações futuras, assegurando a estabilidade e a
independência da família.
2) A propriedade
particular é a expressão da pessoa humana e o fruto do seu trabalho. Decorre do
trabalho desta ou de seus antepassados; é o espelho do indivíduo, que precisa
de um aconchego preservado pela privacidade, onde o indivíduo seja ele mesmo,
cercado dos sinais que identificam o seu eu.
Com outras palavras: a
propriedade particular possibilita e alimenta a iniciativa pessoal e, com esta,
a alegria e o entusiasmo; mediante a propriedade particular, o homem tem não
somente de quê viver, mas também um por quê viver mais concreto e imediato - o
que, para muitas pessoas, é de grande valia, a fim de que desenvolvam sua
genuína personalidade.
3) A propriedade particular
estimula o trabalho. Com efeito; todo homem é espontaneamente atraído pela
perspectiva da recompensa direta e pessoal de seus esforços; é esta que incita
as pessoas a aceitar tarefas árduas, tarefas que elas, de outra forma, não
empreenderiam ou só empreenderiam negligentemente.
A propriedade
particular, favorecendo a concorrência sadia entre indivíduos e grupos,
propicia o progresso e evita o monopólio medíocre e estagnado exercido pelo
Estado absolutista.
É o que o Papa Leão
XIII assim comenta: "O homem possui tal natureza que a perspectiva de
trabalhar sobre um fundo que lhe pertença, duplica seu ardor e sua
aplicação". Donde conclui o Pontífice que a supressão da propriedade
particular acarretaria que "fossem o talento e a habilidade destituídos de
seu estimulante e, consequentemente, ficassem as riquezas estagnadas em suas
fontes; em lugar da igualdade sonhada (no tocante à posse dos bens materiais),
haveria igualdade no desnudamento, na indigência e na miséria" (enc. Rerum
Novarum).
4) A propriedade
particular é penhor de uma sociedade articulada ou organizada, ao passo que a
propriedade meramente coletiva tem por consequência uma sociedade massificada,
sem diversificação nem liberdade. Bem repartida, a propriedade particular
realiza sadia divisão dos centros de influência e defende os cidadãos contra a
concentração de todo o poder nas mãos do Estado. Atualmente, frente aos regimes
totalitários, a propriedade particular é de alta importância para garantir a
liberdade dos indivíduos e a sua independência em relação ao poder civil.
Em conclusão, podemos
reafirmar: o direito de propriedade é um direito natural, como nota sabiamente
R.G. Renard:
"A propriedade
faz parte da natureza do homem e da natureza das coisas. Como o trabalho, ela
encerra um mistério; é a projeção da personalidade humana sobre as coisas. A
pessoa tende à propriedade por um impulso instintivo, do mesmo modo que a nossa
natureza animal tende ao alimento. O apetite da propriedade é tão natural à
nossa espécie como a fome e a sede; apenas é de notar que estes são apetites da
nossa natureza inferior, ao passo que aquele procede da nossa natureza
superior. Todo homem tem alma de proprietário, mesmo os que se julgam inimigos
da propriedade. É isto que se entende quando se afirma que a propriedade
decorre do direito natural" (L'Eglise et Ia Question Sociale, Paris, pp.
137s).
O voto de pobreza
professado pelos Religiosos depende de um carisma próprio, que Deus dá
livremente, sem que isto impeça o cristão legítimo proprietário de chegar à
santidade.
Fonte:
Dom Estevão Bettencourt. P&R 468 – Maio de 2001: Lícita ou não? OS CRISTÃOS
E A PROPRIEDADE PARTICULAR. Disponível em <http://www.catolicos.gonet.biz/kb_read.php?num=1554&head=1>
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