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O inferno
não existe? EB
Dom Estevão Bettencourt
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Em síntese: Leonardo
Boff declarou à revista Rio Artes nº 21, 1997, que o inferno não existe; o
conceito respectivo terá sido elaborado por teólogos, que não levaram em conta
a figura feminina de Deus, que é misericordiosa. Em linguagem irreverente o
autor escarnece a noção bíblica de inferno, que ele parece Ter esquecido,
embora outrora mostrasse conhecer o conteúdo da Bíblia. Na verdade, o inferno
não é o que Dante e a imaginação popular concebem, mas é consequência de livre
opção do homem, o qual se condena a não
amar a Deus, que sempre o amará.
O ex-frei Leonardo
Boff publicou na revista Rio Artes, nº
21, 1997, o artigo “O Inferno não existe”, terá sido elaborado o conceito de
inferno por homens, à revelia da noção de Deus, que é misericordiosa. Visto que
o artigo fez alarde e deixou leitores perplexos, será comentado nas páginas que
se seguem.
Os Dizeres do Autor
Eis palavras textuais de Leonardo Boff:
“O inferno é uma
imagem religiosa, exigência da cultura do homem-varão. Mas que Deus é esse, que
não tem poder sobre o mal? Não é ele
onipotente? Existe a justiça, que condena osperversos. É seu inferno. Mas
trata-se apenas de um drama maior. Deus prepara um outro ato, o da vitória
adequada à sua natureza divina de amor e perdão (…). Essa representação
feminina maternal de Deus ultrapassa o inferno (…).
A misericórdia revela um aspecto essencial da natureza divina: o lado feminino de Deus. Misericórdia significa, etimologicamente, possuir um coração que se compadece da miséria do outro, porque a sente profundamente como sua. Em hebraico é ainda mais forte, pois a palavra misericórdia significa ter entranhas como uma mãe e possuir seios como uma mulher (…).
A existência do
inferno é a eterna vergonha para Deus. É como se pudéssemos ver os diabos do
inferno alegrando-se com uma vitória parcial sobre Deus, mostrando a língua e o
traseiro para Deus e fazendo-lhe trejeitos com as mãos sobre o nariz”.
Não pode deixar de
surpreender o leitor a linguagem usada por um autor que outrora escrevia num
“teologuês” de fundo germânico. Tem-se aqui uma linguagem de baixo calão, pouco
digna da temática abordada e do leitor merecedor de respeito.
O autor levanta o
problema da conciliação da existência do inferno com a misericórdia de Deus. A
abordagem deste problema requer noções claras de um e outro dos termos que
compõem o binômio. Faz-se mister, portanto, procurar elucidar os dois conceitos
em pauta.
Inferno existe? Que é?
Existe…
A existência do
inferno é explicitamente afirmada nos escritos do Novo Testamento – o que
afasta a hipótese de ter sido criada pela imaginação dos homens.
Com efeito,
Em Mt 25, 31-46 Jesus
descreve o quadro do juízo final, em que é dito aos infiéis: “Afastai-vos de
mim… para o fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos, porque tive fome e
não me destes de comer…” (vv. 41s). Sem dúvida, nesta passagem o Senhor recorre
a linguagem particularmente forte, que é preciso entender como tal.Como quer
que seja, significa que há uma sanção condenatória para os que renegam a Deus.
Em Mt 13, 40-42 Jesus termina a parábola do joio e do trigo,
dizendo: “Como se junta o joio e se queima no fogo, assim será no fim do mundo:
o Filho do Homem enviará seus anjos e eles apanharão do seu Reino todos os
escândalos e os praticam a iniquidade e os lançarão na fornalha ardente. Ali
haverá choro e ranger de dentes”. É evidente neste texto o uso de metáforas
(fornalha ardente, choro e ranger de dentes), mas não é menos evidente que o
Senhor se refere a uma sorte punitiva que tocará ao joio ou aos infiéis no
além.
Seja mencionada ainda
a passagem de Jo 5,28s: “Não vos admireis com isto: vem a hora em que todos os
que repousam nos sepulcros ouvirão a voz do Filho do Homem e sairão; os que
tiverem feito o bem para uma ressurreição de vida, e os que tiverem cometido o
mal para uma ressurreição de julgamento”. Ver ainda Ap 21, 8; 22,15.
É claro assim que a
noção de duas sortes póstumas diferentes, correlativas ao tipo de vida de cada
indivíduo, é bíblica, e não somente própria do Novo Testamento; já os judeus
anteriores a Cristo professavam a mesma concepção, como se depreende de Dn
12,2:
“Muitos dos que dormem
no pó da terra, acordarão, uns para a vida eterna, e outros para o opróbrio,
para o horror eterno”.
Consequentemente
torna-se difícil explicar como alguém que conhece as Escrituras, possa dizer
que a noção de inferno foi criada por teólogos.cpa_o_purgat_rio
É de notar, porém, que
o grande obstáculo à aceitação do inferno, para muitas pessoas, são as imagens
fantasiosas que a poesia e a fantasia popular criaram a respeito do inferno. Na
verdade, para muitos o inferno é um tanque de enxofre fumegante com diabinhos e
tridentes a torturar os condenados. Ora tal imagem é falsa. Os conceitos
materiais e grotescos têm que dar lugar a concepções mais puras e dignas de
Deus.
Daí a pergunta:
Em que consiste o inferno?
Antes do mais, é
preciso afastar a ideia de que Deus criou ou cria o inferno (… ) Este não é um
espaço dimensional nem é um lugar, mas sim um estado de alma… estado de alma no
qual o próprio indivíduo se projeta quando rejeita radicalmente a Deus pelo
pecado grave; começa então o estado infernal, do qual o pecador se pode
insensibilizar pelo fato de não dar atenção ao seu íntimo ou à sua consciência,
mas que saltará à tona quando ele não mais puder escapar à voz da consciência.
Vê-se, pois, que não é Deus quem condena ao inferno; ao contrário, o Senhor
Deus quer a salvação de todos os homens, como afirma São Paulo em 1Tm 2,4. É a própria criatura que lavra a sua sentença
ou que se condena quando diz um Não total a Deus, que é o Sumo Bem, o único Bem
que o ser humano não pode perder.
Mais precisamente: o
inferno é o vazio absoluto ou a suprema frustração. É o não amar (…) não amar
nem a Deus nem ao próximo. Todo homem
foi feito para o Bem Infinito, como notava S. Agostinho (+ 430): “Senhor, Tu
nos fizeste para Ti, e inquieto é o nosso coração enquanto não repousa em Ti”
(Confissões I 1). Quem não repousa em
Deus, inquieta-se e angustia-se, à semelhança da agulha magnética, que foi
feita para o Norte, que a atrai; quando alguém a desvia do seu Norte, ela se agita
e só pára quando se lhe permite voltar-se para o Norte.
Consequentemente,
vê-se que o inferno é mesmo algo de lógico, pois é a violência que o homem
comete contra si mesmo. Verdade é que ninguém pode definir quantas pessoas
morrem avessas a Deus. Bem pode acontecer que na hora da morte muitos pecadores
obstinados se convertam e recebam a graça da reconciliação com Deus, como se
deu no caso o bom ladrão. Afinal ninguém sabe quantos “bons ladrões” existiram
e existirão através dos séculos. Possivelmente um grande número (…) para
surpresa de quem só considera a face aparente da história.
E a Misericórdia de Deus?
L. Boff apela para a
misericórdia de Deus e julga que a existência do inferno seria motivo de
vergonha para Deus… O diabo zombaria do Senhor Deus pelo fato de haver seres
humanos condenados ao inferno.
Deve-se responder que,
sem dúvida, Deus é infinitamente misericordioso, mas não é “tiranicamente”
misericordioso. Com outras palavras: Deus não impõe a sua misericórdia ou o seu
perdão a quem não o pede ou não o quer receber. Deus não obriga o homem a amar
a Deus. Nisto consiste precisamente a grandeza e a nobreza de Deus. Ele não
violenta nem força a criatura a se abrir para a misericórdia. Ora na outra vida
não há possibilidade de conversão. A morte
fixa o ser humano em sua última opção, de modo que após a morte ninguém pode
mudar suas atitudes. Assim o inferno, em vez de ser motivo de vergonha para
Deus, é o testemunho de que Deus respeita a sua criatura e não lhe tira a
liberdade que lhe deu para dignificaria.
Pode-se ir mais longe,
e dizer que o inferno é a consequência do amor irreversível de Deus. Tal amor
se dá e não volta atrás; não pode voltar atrás precisamente porque é divino e
não pode contradizer a si mesmo (cf. 2Tm 2,13). Por isto Deus ama a criatura
que não O ama e se afastou dele. O fato
de que Deus continua a amar, é que atormenta o réprobo; este percebe que se
incompatibilizou com o Supremo Bem e o Sumo Amor. Donde se segue que o inferno é compatível com
a Grandeza e a Santidade de Deus. Uma
imagem servirá para ilustrar de algum modo o que é o inferno: observe-se o caso
de um jovem que foge de casa para ir viver com seus colegas numa república de
estudantes, porque “papai é cafona e mamãe é quadrada” (…). Pai e mãe que amam
o filho, se preocupam, e resolvem enviar recados, perguntando ao jovem como
está(…) se precisa de alguma coisa (…) quando voltará (…) Estas interpelações
do amor incomodam ou atormentam o filho; este se daria por mais tranquilo se
pai e mão desistissem de o amar seus
filhos e de mostrar-lhe o seu amor.
Paralelamente Deus não pode deixar de amar suas criaturas, mesmo quando
elas se afastam do Pai celeste; a consciência desse amor atormenta o pecador
que se incompatibilizou com Deus. Se o
Senhor retirasse ou cancelasseo seu amor, o réprobo não sofreria tanto, porque
estaria totalmente voltado para seus ídolos, sem ser atraído pelo Bem
Supremo. Mas, como dito, Deus não se
pode desdizer ou não poder dizer Não após ter dito Sim (aquele Sim proferido
quando criou cada ser humano). Nisto está a nobreza de Deus, que é
paradoxalmente motivo de tormento para quem não responde ao amor divino. Em
suma, é altamente consolador ser amado por Deus, mas também é assustador ser
amado por Deus e não O amar.
Eis o que, em poucos
parágrafos, se pode responder a Leonardo Boff, a quem Deus queira conceder suas
melhores luzes e graças!
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 432 – 1998, p. 212
Fonte:
Dom
Dom Estevão Bettencourt. P&R 432 – 1998: O inferno não existe?. Disponível
em <http://cleofas.com.br/o-inferno-nao-existe-eb/>
Desde 1 de Fevereiro de 2011.
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