------------------------------------------------------------------------------------------
Preparação
para a morte.
Santo Afonso Maria de
Ligório
------------------------------------------------------------------------------------------
CONSIDERAÇÃO XVII
Abuso da divina
misericórdia
Ignoras quoniam
benignitas Dei ad pœnitentiam te adducit?
Não sabes que a
benignidade de Deus te convida à penitência? (Rm 2,4)
Ponto I
Lê-se na parábola do
joio que, tendo crescido num campo essa má erva juntamente com a boa semente,
os servos quiseram arrancá-la (“Vis, imus, et colligimus ea?” Mt 13,29).
O Senhor, porém, lhes objetou: “Deixai-a crescer; mais tarde a arrancaremos
para lançá-la ao fogo – In tempore messis dicam messoribus, colligite primum
zizania, et alligate ea in fasciculos ad comburendum.” (Mt 13,30).
Infere-se desta parábola, por um lado, a paciência de Deus para com os
pecadores, e por outro o seu rigor para com os obstinados.
Diz Santo Agostinho1 que
o demônio seduz os homens por duas maneiras: “Com desespero e com esperança – Desperando,
et sperando”. Depois que o pecador cometeu o delito, arrasta-o ao desespero2
pelo temor da justiça divina; mas, antes de pecar, excita-o a cair em tentação
pela esperança na divina misericórdia. É por isso que o Santo nos adverte,
dizendo3: “Depois do pecado tenha esperança na divina misericórdia; antes do
pecado tema a justiça divina - Post peccatum spera misericordiam; ante
peccatum pertimesce iustitiam”. E assim é, com efeito. Porque não merece
a misericórdia de Deus aquele que se serve da mesma para ofendê-lo. A
misericórdia é para quem teme a Deus e não para o que dela se serve com o
propósito de não temê-lo.
Aquele que ofende a
justiça — diz o Abulense4 — pode recorrer à misericórdia; mas a quem pode
recorrer o que ofende a própria misericórdia?
Será difícil encontrar
um pecador a tal ponto desesperado que queira expressamente condenar-se. Os
pecadores querem pecar, mas sem perder a esperança da salvação. Pecam e dizem:
Deus é de misericórdia; mesmo que agora peque, mais tarde confessar-me-ei. “Bonus
est Deus, faciam quod mihi placet”, assim pensam os pecadores, diz Santo
Agostinho5 (Tract. 33. in Io.). Mas, meu Deus, assim pensaram
muitos que já estão condenados.
“Não digas — exclama o
Senhor — a misericórdia de Deus é grande: meus inumeráveis pecados me serão
perdoados com um ato de contrição – Et ne dicas: miseratio Domini magna est,
multitudinis peccatorum meorum miserebitur” (Ecl 5,6). Não faleis assim —
nos diz o Senhor — e por quê? “Porque sua ira está tão pronta como sua
misericórdia; e sua cólera fita os pecadores – Misericordia enim, et ira ab
illo cito proximant, et in peccatores respicit ira illius” (Ecl 5,7). A
misericórdia de Deus é infinita; mas os atos dela, ou seja, os de comiseração,
são finitos. Deus é misericordioso, mas também é justo. “Sou justo e
misericordioso Ego sum iustus, et misericors — disse o Senhor a Santa
Brígida,6 — e os pecadores só pensam na misericórdia – peccatores tantum
misericordem me existimant”. Os pecadores — escreve São Basílio7 — só
querem considerar Deus pela metade: “O Senhor é bom; mas também é justo. Não
queirais pensar Deus pela metade – Bonus est Dominus, sed etiam iustus;
nolite Deum ex dimidia parte cogitare”. Tolerar quem se serve da
misericórdia de Deus para mais o ofender — dizia o Padre Ávila8 — fora antes
injustiça que misericórdia.
A misericórdia foi prometida a quem teme a Deus
e não a quem abusa dela. “Et misericordia eius
timentibus eum” (Lc 1, 50), como cantou a divina Mãe. A justiça ameaça os
obstinados, porque, como diz Santo Agostinho9, Deus que não mente nas
promessas, também não mente em suas ameaças. “Qui verus est in promittendo,
verus est in minando”.
Acautelai-vos — diz
São João Crisóstomo10 — quando o demônio (não Deus) vos promete a misericórdia
divina com o fim de que pequeis – Cave ne unquam canem illum suscipias, qui
misericordiam Dei pollicetur” (Hom. 50. ad Pop. Antioch.)
Ai daquele — acrescenta Santo Agostinho — que para pecar confia na
esperança!...11: “Sperat, ut peccet; væ a perversa spe” (In Ps. 144). A
quantos essa vã ilusão tem enganado e levado à perdição. “Dinumerari non
possunt, quantos hæc inanis spei umbra deceperit”12. Desgraçado daquele que
abusa da bondade de Deus para ofendê-lo mais!...
Lúcifer — como afirma São Bernardo13 — foi castigado por Deus com tão
assombrosa presteza, porque, ao rebelar-se, esperava não ser punido. O rei
Manassés pecou; converteu-se em seguida, e Deus o perdoou. Mas para Amon, seu
filho, que, vendo quão facilmente seu pai havia conseguido o perdão,
entregou-se à má vida com a esperança de também ser perdoado, não houve
misericórdia. Por essa causa — diz São João Crisóstomo14 — Judas se condenou,
porque se atreveu a pecar confiando na clemência de Jesus Cristo – “Fidit in
lenitate magistri”. Em suma: se Deus espera com paciência, não espera
sempre. Pois, se o Senhor sempre nos tolerasse, ninguém se condenaria; ora, é
larga a porta e espaçoso o caminho que leva à perdição, e muitos são os que
entram por ele – “Lata porta et spatiosa via est, quæ ducit ad perditionem, et
multi intrant per eam” (Mt 7,13). Quem ofende a Deus, fiado na esperança de
ser perdoado, “é um escarnecedor e não um penitente – irrisor est non poenitens”,
diz Santo Agostinho15.
Por outra parte, afirma São Paulo que de “Deus não se pode zombar – Deus
non irridetur” (Gl 6,7). E seria zombar de Deus continuar a ofendê-lo, sempre
que quiséssemos e depois pretender ir para o paraíso. Quem semeia pecados, não
pode esperar outra coisa que o eterno castigo no inferno – “Quæ enim
seminaverit homo, hæc et metet” (Gl 6,8). O laço com que o demônio arrasta
quase todos os cristãos que se condenam é, sem dúvida, esse engano com que os
seduz, dizendo-lhes: “Pecai livremente, porque, apesar de todos os pecados,
haveis de salvar-vos”.
O Senhor, porém, amaldiçoa aquele que peca na esperança de perdão16 –
“Maledictus homo qui peccat in spe”.
A esperança depois do
pecado, quando o pecador deveras se arrepende, é agradável a Deus, mas a dos
obstinados lhe é abominável - Et spes illorum abominatio” (Jó 11.
20).
Tal esperança provoca
o castigo de Deus, assim como seria passível de punição o servo que ofendesse a
seu patrão, precisamente porque é bondoso e amável.
AFETOS E SÚPLICAS
Meu Deus! Eis aqui um
dos que vos têm ofendido porque éreis bom para mim!... Ó Senhor, esperai-me
ainda. Não me abandoneis, pois espero, com o auxílio de vossa graça, não tornar
a dar-vos motivo para que me deixeis. Arrependo-me, ó Bondade infinita, de vos
ter ofendido, cansando vossa paciência.
Agradeço-vos por me
terdes esperado até agora. De hoje em diante não tornarei a ser, como hei sido,
um miserável traidor. Já que tendes esperado para ver-me convertido em
fervoroso amante de vossa bondade, crede, como espero, que esse dia ditoso já
despontou. Amo-vos sobre todas as coisas; estimo a vossa graça mais que todos
os reinos do mundo, e a perdê-la preferira perder mil vezes a vida. Meu Deus,
por amor de Jesus Cristo, concedei-me, juntamente com vosso santo amor, o dom
da perseverança até à morte. Não permitais que de novo volte a trair-vos ou
deixe de vos amar.
E vós, Virgem Maria,
minha esperança, alcançai-me a perseverança final e nada mais vos peço.
Notas
1 SANTO AGOSTINHO, In
Ioan. Evang., tr. XXXIII, n. 8; PL 35, 1651: ”Ex utroque igitur
homines periclitantur, et sperando et desperando, contrariis rebus, contrariis
affectionibus”. Cfr. CC 36, 310.
2 Talvez seja uma
citação implícita Louis DE BLOIS, O.S.B. (Blosius), Paradisus animæ fidelis,
c. 2, n. 4; Opera, Antverpiæ 1632, 5, col. 2: ”Diabolus hoc malignitatis
dolo fere uti consuevit, ut ei qui peccare statuit, ipsum Dominum
clementissimum et misericordissimum esse polliceatur: ubi vero peccato admisso
poenitentiam agere voluerit, iam illum implacabilem nimiumque severum esse
modis omnibus suadeat. Sed audiendus non est callidus impostor”.
3 O conceito está
presente no hiponense: SANTO AGOSTINHO, In Ioan. Evang., tr. XXXIII, n. 7; PL 35, 1650: ”Intendant
ergo qui amant in Domino mansuetudinem, et timeant veritatem. Etenim dulcis et rectus Dominus (Ps 24, 8). Amas quod dulcis est, time
quod rectus est”. Cfr. CC 36, 309. Beato Gennaro Maria SARNELLI, La
via facile, e sicura del paradiso, p. II, cons. 44; I, Napoli 1738, 328,
atribui o texto a São Jerônimo, sem indicar a obra: “Dice s. Girolamo: Sperate
nella misericordia di Dio per li peccati passati. Ma temete l'ira di Dio per li
peccati futuri”.
4 Alonso TOSTADO (ABULESIS),
In Exodum, c. IX, q. 8; c. XXXIII, q. 18; Opera, Venetiis 1596,
58, col. 4; 160, col. 1. Veja também: In Matth., c. XVIII, q. 140; 170,
col. 1.
5 SANTO AGOSTINHO, In
Ioan. Evang., tr. XXXIII, n. 8; PL 35, 1651: «Sperando qui
decipitur? Qui dicit: Bonus est Deus, misericors est Deus, faciam quod mihi
placet, quod libet». Cfr. CC 36, 310. Cfr. ID., Sermo XX; PL
38, 139-140.
6 SANTA BRÍGIDA, Revelationes,
l. 1, c. 5; Coloniæ Agrippinæ 1628, 8, col. 2: ”Omnes credunt me, et prædicant
misericordem, sed quasi nullus prædicat, nec credit me esse iuste iudicantem.
Iniquus enim esset iudex, qui ex misericordia iniquos dimitteret impunitos, ut
iniqui iustos eo magis opprimerent. Sed ego sum iustus iudex et misericors”.
7 SÃO BASÍLIO MAGNO, Regulæ
fusius tractatæ, Prooemium, n. 4; PG 31, 898: ”Misericors quidem est, sed
et iudex... Misericors enim Dominus et iustus. Ne igitur dimidia ex parte Deum
cognoscamus neque ipsius benignitas ignaviæ nobis occasio sit”.
8 SÃO JOÃO D’ÁVILA, Lettere
spirituali, p. III, lett. 12 ad un suo discepolo predicatore, Roma 1668
(trad. B. Nicolucci), 64: “Come perdonerà Iddio a chi l'ha offeso, e se ne
ride, e non tiene rimorso nel suo cuore d'aver disprezzato il suo Padre, Dio, e
Signore? Non sarebbe questa misericordia, ma un mancamento di giustizia; e cosa
molto contra ragione, che a Dio non conviene, le cui opere sono giudizio, peso
e misura”.
Cfr. SÃO JOÃO D’ÁVILA,
Obras completas, I, Epistolario, III parte, carta 167 a un su
discípulo predicador; Madrid 1952, 828: “Cómo perdonará Dios a quien le ha
ofendido y se ríe y no tiene pellizco en su corazón de haber despreciado a su
Padre, Dios y Señor? No sería esto misericordia, sino falta de justicia, y cosa
muy contra razón, cual a Dios no conviene, cuyas obras son juicio, peso y
medida”.
9 PSEUDO-AGOSTINHO, De
vera et falsa poenitentia, c. VII, n. 18; PL 40, 1119: “Qui verus
est in promittendo, verus est in minando”. Esta obra, outrora atribuída a Santo
Agostinho, pertence a um autor do século XI (cfr. Glorieux, 29).
10 Pietro GISOLFO, La
guida de' peccatori, p. I, disc. VI; 1, Napoli 1694, 160: «Osserva con che
parole te n'ammonisce s. Giovan Climaco: Cave ne unquam canem illum suscipias,
qui misericordiam Dei pollicetur». Cfr. SÃO JOÃO CLÍMACO, Scala paradisi,
gradus VI; PG 88, 795: ”Tu vero lugens nequaquam admittas canem illum
Tartareum, qui Deum benignum et clementem esse suggerit...; hoc enim studet ut
luctum et timorem Domini, qui veram parit securitatem abs te excludat”. Na mesma
página, Gisolfo cita: “Talis est diabolus: omnia arte non ex directo prætendit,
ne caveamus (SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, hom. 50 ad pop. Ant.)”. Foi um equívoco de
transcrição da parte de Santo Afonso, que atribui ao Crisóstomo um texto que
pertence ao Clímaco.
11 SANTO AGOSTINHO, Enarrationes
in Psalmos. CXLIV, n. 11; PL 1877: ”Audi et vocem sperantis:
Misericordia Domini magna est: quando me convertero, dimittet mihi omnia: quare
non facio quidquid volo? Desperat, ut peccet; sperat, ut peccet. Utrumque
metuendum est, utrumque periculosum. Væ a desperatione! væ a perversa spe”.
Cfr. CC 40, 2096.
12 PSEUDO-AGOSTINHO,
Sermo 154, De Passione Domini et de beato latrone, n. 9; PL 39,
2040: ”Immittit diabolus securitatem ut inferat perditionem: neque dinumerari
possunt, quantos hæc inanis spei umbra deceperit”. No apêndice das obras de
Santo Agostinho, mas é de GALLICANUS (cfr. Clavis, 368).
13 SÃO BERNARDO, Tractatus
de gradibus superbiæ, n. 36; PL 182, 962: ”Dei bonitatem attendens,
dixisti in corde tuo: Non requiret (Ps. X, 13); propter quod, o impie,
Deum irritasti”. Cfr. Ibid., nn. 31-33.
14 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO,
In Matthæum homilia 83, n. 2; PG 58, 748: ”Confidebat in lenitate
magistri: quod maxime illum confundere debuit, et venia omni privare, quod tam
mansuetum magistrum prodiderit”.
15 PSEUDO-AGOSTINHO, Ad
fratres in eremo, Sermo 11; PL 40, 1255: ”Numquid et qui dissimulat,
irrisor est, et non poenitens, qui adhuc agit quod poenitet” (Glorieux, 31).
16 L. SABATINO, Cito
cotidiano, med. VII; Montefiascone 1721, 87: ”Bisogna… che facciamo opere
buone, per ravvivare in noi la speranza della divina misericordia, ed acciocché
questa non sia temeraria, e cada sopra di noi la maledizione dello Spirito
Santo: Maledictus homo, qui peccat in spe, bisogna risolversi a mutar
vita”. Veja também Giovanni Domenico MANSI, op. cit.; III, 293, col. 2:
”Est enim irrefragabilis illa Spiritus Sancti sententia: Maledictus, qui peccat
in spe”. Talvez provenha de São Bernardo, In Ps. Qui habitat, serm. I,
n. 2; PL 183, 187: ”Sunt… quia sic de misericordia eius sibi ipsis
blandiuntur, ut a peccatis suis non emendentur... Contra hos propheta:
Maledictus, inquit, qui peccat in spe”. Ibid., sermo II, n. 3: ”Non
desperabo, nec frustra sperabo, quia maledictus qui peccat in spe”. O texto
citado parece bíblico, mas não é. Provavelmente São Bernardo.
Fonte do PDF:
Padre Paulo Ricardo de Azevedo Jr.
Fonte do PDF:
Padre Paulo Ricardo de Azevedo Jr.
Para citar este artigo:
Santo
Afonso Maria de Ligório. Preparação para a Morte. Disponível em < http://amigos-catolicos-evangelizadores.blogspot.com/2016/08/0056-santo-afonso-maria-de-ligorio-preparacao-para-a-morte.html>
Desde 20 de Dezembro de 2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário