CARTA ENCÍCLICA
QUADRAGESIMO ANNO
DE SUA SANTIDADE
PAPA PIO XI
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS,
PATRIARCAS, PRIMAZES, ARCEBISPOS,
BISPOS E DEMAIS ORDINÁRIOS
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
BEM COMO A TODOS OS FIÉIS DO ORBE CATÓLICO
QUADRAGESIMO ANNO
DE SUA SANTIDADE
PAPA PIO XI
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS,
PATRIARCAS, PRIMAZES, ARCEBISPOS,
BISPOS E DEMAIS ORDINÁRIOS
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
BEM COMO A TODOS OS FIÉIS DO ORBE CATÓLICO
SOBRE A RESTAURAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO
DA ORDEM SOCIAL EM CONFORMIDADE COM
A LEI EVANGÉLICA NO XL ANIVERSÁRIO
DA ENCÍCLICA DE LEÃO XIII «RERUM NOVARUM»
DA ORDEM SOCIAL EM CONFORMIDADE COM
A LEI EVANGÉLICA NO XL ANIVERSÁRIO
DA ENCÍCLICA DE LEÃO XIII «RERUM NOVARUM»
Veneráveis Irmãos e Amados
Filhos Saúde e Bênção Apostólica
Filhos Saúde e Bênção Apostólica
No 40º aniversário da magistral
encíclica de Leão XIII « Rerum
novarum », todo o orbe católico, movido dos sentimentos da mais viva
gratidão, propõe-se comemorá-la com a devida solenidade.
A Encíclica « Rerum novarum ».
Já antes, em certo modo, haviam
preparado o caminho àquele documento de solicitude pastoral, as encíclicas do
mesmo Nosso Predecessor sobre o princípio da sociedade humana que é a família e
o santo sacramento do Matrimónio, (1)
sobre a origem da autoridade civil, (2)
e a devida ordem das suas relações com a Igreja, (3)
sobre os principais deveres dos fieis como cidadãos, (4)
contra os princípios do socialismo, (5)
contra as falsas teorias da liberdade humana, (6)
e outras do mesmo género que plenamente revelaram o modo de pensar de Leão
XIII; contudo a encíclica « Rerum
novarum » distingue-se das demais por ter dado a todo o género humano
regras seguríssimas para a boa solução do espinhoso problema do consórcio
humano, a chamada « Questão social », precisamente quando isso mais oportuno e
necessário era.
Sua ocasião
Com efeito ao fim do século XIX,
em consequência de um novo género de economia, que se ia formando, e dos
grandes progressos da indústria em muitas nações, aparecia a sociedade cada vez
mais dividida em duas classes : das quais uma, pequena em número, gozava de
quase todas as comodidades que as invenções modernas fornecem em abundância; ao
passo que a outra, composta de uma multidão imensa de operários, a gemer na
mais calamitosa miséria, debalde se esforçava por sair da penúria, em que se
debatia.
Com tal estado de coisas
facilmente se resignavam os que, nadando em riquezas, o supunham efeito
inevitável das leis económicas, e por isso queriam que se deixasse à caridade
todo o cuidado de socorrer os miseráveis; como se a caridade houvesse de capear
as violações da justiça, não só toleradas, mas por vezes até impostas pelos
legisladores. Ao contrário só a duras penas o toleravam os operários, vítimas
da fortuna adversa, e tentavam sacudir o jugo duríssimo: uns, levados na fúria
de maus conselhos, aspiravam a tudo subverter, os outros, a quem a educação
cristã demovia d'esses maus intentos, estavam contudo firmemente convencidos de
que nesta matéria era necessária uma reforma urgente e radical.
O mesmo pensavam todos os
católicos, sacerdotes ou leigos, que, impelidos por uma caridade admirável, já
de há muito trabalhavam em aliviar a miséria imerecida dos operários, não
podendo de modo nenhum persuadir-se de que uma diferença tão grande e tão
iníqua na distribuição dos bens temporais correspondesse verdadeiramente aos
desígnios sapientíssimos do Criador.
Procuravam eles com toda a
lealdade um remédio eficaz a esta lamentável desordem da sociedade e uma firme
defesa contra os perigos ainda maiores que a ameaçavam; mas tal é a fraqueza
mesmo das melhores inteligências humanas, que ora se viam repelidos como
inovadores perigosos, ora obstaculados por companheiros de acção mas de ideais
diversos: e assim hesitantes entre várias opiniões, nem sabiam para onde
voltar-se.
No meio de tão grande luta de
espíritos, quando de uma parte e doutra ferviam disputas nem sempre pacíficas,
todos os olhos se volviam, como tantas outras vezes, para a cátedra de Pedro,
para este depósito sagrado de toda a verdade, donde se difundem pelo mundo
inteiro palavras de salvação; e todos, sociólogos, patrões, operários,
acorrendo com frequência desusada aos pés do Vigário de Cristo na terra,
suplicavam a uma voz que se lhes indicasse enfim o caminho seguro.
Prudentíssimo como era o
Pontífice, tudo ponderou longamente diante de Deus, chamou a conselho homens de
reconhecida ciência, pesou bem as razões por uma parte e outra, e finalmente
movido « pela consciência do múnus Apostólico », (7)
para que não parecesse, que descurava os seus deveres calando por mais tempo, (8)
decidiu-se a falar a toda a Igreja de Cristo, antes a todo o género humano, no
exercício do magistério divino a ele confiado.
Ressoou por tanto no dia 15 de
maio de 1891 aquela voz há tanto suspirada, ressoou robusta e clara, sem que a
intimidassem as dificuldades, nem a enfraquecesse a velhice, e ensinou à
família humana, a empreender novos caminhos no terreno social.
Tópicos principais
Conheceis, veneráveis Irmãos e
amados Filhos, e sabeis perfeitamente a admirável doutrina, que tornou a
encíclica « Rerum
novarum » digna de eterna memória. Nela o bom Pastor, condoído ao ver «
a miserável e desgraçada condição, em que injustamente viviam » tão grande
parte dos homens, tomou animoso a defesa dos operários, que « as condições do
tempo tinham entregado e abandonado indefesos à crueldade de patrões desumanos
e à cobiça de uma concorrência desenfreada ».(9)
Não pediu auxílio nem ao liberalismo nem ao socialismo, pois que o primeiro se
tinha mostrado de todo incapaz de resolver convenientemente a questão social, e
o segundo propunha um remédio muito pior que o mal, que lançaria a sociedade em
perigos mais funestos.
O Pontífice no uso do seu direito
e convencido de que a ele principalmente fora confiada a salvaguarda da
religião e de tudo o que com ela está estreitamente vinculado, pois se tratava
de um problema « a que não se podia encontrar solução plausível sem o auxílio
da religião e da Igreja », (10)
apoiando-se unicamente nos princípios imutáveis tirados do tesoiro da recta
razão e da revelação divina, confiadamente e « como quem tinha autoridade », (11)
expôs com inexcedível clareza e proclamou não só « os direitos e os deveres que
devem reger as relações mútuas dos ricos e dos proletários, dos capitalistas e
dos trabalhadores », (12)
mas também a parte que deviam tomar a Igreja, a autoridade civil e os próprios
interessados na solução dos conflitos sociais.
Nem a voz Apostólica ressoou
debalde; antes, com assombro a ouviram e a aplaudiram com suma benevolência,
além dos filhos obedientes da Igreja, muitos dos que viviam longe da verdade e
da unidade da fé e quase todos os que depois se ocuparam de sociologia e
economia tanto no estudo teórico como na pública legislação.
Foram porém os operários cristãos
os que com maior alegria acolheram a encíclica ao verem-se assim vingados e
defendidos pela suprema Autoridade da terra e com eles todas as almas generosas,
que, já de há muito empenhadas em aliviar a sorte dos operários, não tinham
encontrado senão indiferença em muitos, suspeitas odientas e até manifesta
hostilidade em muitos outros. E é por isso que todos estes tiveram depois em
tanta estima aquelas letras Apostólicas, que todos os anos costumam
celebrar-lhe a memória com demonstrações de gratidão diversas nas diversas
terras.
No meio de tanta harmonia de
sentimentos não faltaram vozes discordantes de alguns, mesmo de católicos, a
quem a doutrina de Leão XIII, tão nobre e elevada, tão nova para humanos
ouvidos pareceu suspeita e até escandalizou. Ela assaltava ousadamente e
derribava os ídolos do liberalismo, não fazia caso de preconceitos inveterados,
prevenia inopinadamente o futuro: que muito que os rotineiros desdenhassem
aprender esta nova filosofia social e os tímidos receassem subir a tais
alturas, ao passo que outros, admirando aquela luz, a reputavam perfeição
ideal, mais para desejar que para realizar?
Fim da presente Encíclica
Por isso é que Nós, veneráveis
Irmãos e amados Filhos, agora que todo o mundo e sobretudo os operários
católicos, que de toda a parte acodem a esta Alma Cidade, comemoram com tanta
solenidade e entusiasmo o quadragésimo aniversário da encíclica « Rerum
novarum », julgamos dever Nosso aproveitar esta ocasião para recordar
os grandes. benefícios que dela advieram à Igreja católica e a toda a
humanidade; defender a doutrina social e económica de tão grande Mestre
satisfazendo a algumas dúvidas, desenvolvendo mais e precisando alguns pontos;
finalmente, chamando a juízo o regime económico moderno e instaurando processo
ao socialismo, apontar a raiz do mal estar da sociedade contemporânea e
mostrar-lhe ao mesmo tempo a única via de uma restauração salutar, que é a
reforma cristã dos costumes. Eis os três pontos da presente encíclica.
I.
BENEFÍCIOS DA «RERUM NOVARUM »
Para começarmos pelo que em
primeiro lugar propusemos, seguindo a advertência de S. Ambrósio, (13)
que a gratidão é o primeiro e mais imperioso dos deveres, não podemos
conter-Nos que não demos a Deus as maiores acções de graças pelos imensos
benefícios que da encíclica de Leão XIII advieram à Igreja e a todo o género
humano. Se Nós os quiséssemos enumerar, mesmo de passagem, deveríamos por assim
dizer, recordar toda a história dos últimos quarenta anos, na parte relativa à
questão social. Mas tudo se pode reduzir a três pontos, conforme ao tríplice
concurso que o Nosso Predecessor desejava, para poder levar a efeito a sua obra
grandiosa de restauração.
1. - ACÇÃO DA IGREJA
Em primeiro lugar o que da Igreja
se podia esperar, declarou-o eloquentemente o mesmo Leão XIII : « A Igreja é a
que aufere do Evangelho a única doutrina capaz de pôr termo à luta, ou ao menos
de a suavizar, tirando-lhe toda a aspereza; é ela que com seus preceitos
instrui as inteligências e se esforça por moralizar a vida dos indivíduos; que
com utilíssimas instituições melhora continuamente a sorte dos proletários ». (14)
a) No campo doutrinal
Ora a Igreja não deixou estagnar
no seu seio esta linfa preciosa, senão que a fez correr em abundância para o
bem comum da suspirada paz. O próprio Leão XIII e seus Sucessores não cessaram
de proclamar de viva voz e por escrito a doutrina social e económica da
encíclica « Rerum
novarum », urgindo-a e aplicando-a segundo a ocasião às circunstâncias
de tempo e lugar, com aquela caridade paterna e constância pastoral, que sempre
os distinguiu na defesa dos pobres e desvalidos. (15)
Nem foi outro o proceder de grande parte do Episcopado, que com assiduidade e
maestria declarou e comentou a mesma doutrina, adaptando-a às condições dos
diversos países, segundo a mente e as directivas da Santa Sé. (16)
Não é pois de admirar, que muitos
sábios quer eclesiásticos quer leigos se aplicassem diligentemente, seguindo a
orientação dada pela Igreja, a desenvolver a ciência social e económica,
conforme às exigências do nosso tempo, levados sobretudo do desejo de tornar a
doutrina inalterada e inalterável da Igreja mais eficaz para remediar as
necessidades modernas.
Foi assim que à luz e sob o
impulso da encíclica de Leão XIII nasceu uma verdadeira ciência social
católica, cultivada e enriquecida continuamente pela indefessa aplição
d'aquêles varões escolhidos, que chamámos cooperadores da Igreja. Nem eles a
deixam escondida na sombra de simples discussões eruditas, mas expõem-na à luz
do sol em públicas palestras, como o demonstram exuberantemente os cursos, tão
úteis e tão frequentados, instituídos nas universidades católicas, academias e
seminários, os congressos ou « semanas sociais » celebrados frequentemente e
com grande fruto, os círculos de estudos, os escritos repletos de oportuna e sã
doutrina, por toda a parte e por todos os modos divulgados.
E não são estes apenas os frutos
do documento Leoniano : a doutrina ensinada na encíclica « Rerum
novarum » impôs-se insensivelmente à atenção d'aqueles mesmos que, separados
da unidade católica, não reconhecem a autoridade da Igreja ; e assim os
princípios de sociologia católica entraram pouco a pouco no património de toda
a sociedade humana ; e as verdades eternas, tão altamente proclamadas pela
santa memória do Nosso Predecessor, vemo-las frequentemente citadas e
defendidas não só em jornais e livros mesmo acatólicos, mas até nos parlamentos
e tribunais.
E quando após a grande guerra os
governantes das principais potências, trataram de restabelecer a paz sobre as
bases de uma completa renovação social, entre as leis, feitas para regular o
trabalho dos operários segundo a justiça e a equidade, decretaram muitas tão
conformes com os princípios e directivas de Leão XIII, que parecem
intencionalmente copiadas. É que a encíclica « Rerum
novarum » é um documento tão notável, que bem se pode dizer com
palavras de Isaias : « Estandarte arvorado à face das nações »! (17)
b) Na prática
Assim se iam divulgando cada vez
mais à luz das investigações científicas os preceitos de Leão XIII ; ao mesmo
tempo passava-se à sua aplicação prática. E primeiramente com actividade e
benevolência fizeram-se todos os esforços para. elevar aquela classe, que os
recentes progressos da indústria tinham aumentado desmedidamente sem lhe darem
na sociedade o lugar que lhe competia, e que por isso jazia em quase completa
desconsideração e abandono : falamos dos operários., a cuja cultura zelosos
sacerdotes de um e outro clero, apesar de sobrecarregados com outros cuidados
pastorais, se aplicaram desde logo, sob a guia dos respectivos Prelados e com
grande fruto d'aquelas almas. Este trabalho constante vara embeber de espírito
cristão as almas dos operários contribuiu também muitíssimo para lhes dar a
verdadeira consciência da própria dignidade, e para habilitá-los, pela
compreensão clara dos direitos e deveres da sua classe, a progredir honrada e
felizmente no campo social e económico, a ponto de servirem de guias aos
outros.
Daqui os meios de subsistência
melhor assegurados e em maior cópia : por quanto não só começaram a
multiplicar-se segundo as exortações do grande Pontífice as obras de caridade e
beneficência, mas também foram surgindo por toda a parte e cada vez mais numerosas
as associações de mútuo socorro para operários, artistas, agricultores e
jornaleiros de toda a espécie, fundadas segundo os conselhos e directivas da
Igreja e ordinariamente sob a direcção do clero.
2. - ACÇÃO DA AUTORIDADE CIVIL
Quanto à autoridade civil, Leão
XIII, ultrapassando com audácia os confins impostos pelo liberalismo, ensina
impertérrito, que ela não deve limitar-se a tutelar os direitos e a ordem
pública, mas antes fazer o possível « para que as leis e instituições sejam
tais... , que da própria organização do Estado dimane espontaneamente a
prosperidade da nação e dos indivíduos ». (18)
Deve sim deixar-se tanto aos particulares como às famílias a justa liberdade de
acção, mas contanto que se salve o bem comum e não se faça injúria a ninguém.
Aos governantes compete defender toda a nação e os membros que a constituem, tendo
sempre cuidado especial dos fracos e deserdados da fortuna ao proteger os
direitos dos particulares. « Por quanto a classe abastada, munida dos seus
próprios recursos, carece menos do auxílio público; pelo contrário a classe
indigente, desprovida de meios pessoais, esteia-se sobre tudo na protecção do
Estado. Por conseguinte deve ele atender com particular cuidado e providência
aos operários, visto serem eles do número da classe pobre ». (19)
Não negamos que alguns
governantes, já antes da encíclica de Leão XIII, tivessem provido às
necessidades mais urgentes dos obreiros e reprimido as injustiças de maior
vulto a estes feitas. Mas foi só depois que a palavra Apostólica ressoou ao
mundo inteiro desde a cátedra de Pedro, que os governos, capacitando-se mais da
sua missão, se aplicaram a desenvolver uma política social mais activa.
E na verdade, em quanto vacilavam
os princípios do liberalismo, que havia muito paralisavam a obra eficaz dos
governos, a encíclica « Rerum
novarum» produziu no seio das nações uma grande corrente favorável a
uma política francamente social, e de tal modo excitou os melhores católicos a
cooperar com as autoridades, que não raro foram eles os defensores mais
ilustres da nova legislação nos próprios parlamentos. Mais ainda : foram
ministros da Igreja compenetrados da doutrina de Leão XIII que propuseram às
câmaras muitas das leis sociais recentemente promulgadas, e que depois mais
urgiram e promoveram a sua execução.
Deste contínuo e indefesso
trabalho nasceu aquela jurisprudência completamente desconhecida nos séculos
passados, que se propõe defender com ardor os sagrados direitos do operário,
provenientes da sua dignidade de homem e de cristão : de facto estas leis
protegem a alma, a saúde, as forças, a família, as casas, as oficinas, o
salário, abrangem os acidentes de trabalho, numa palavra, tudo aquilo que
interessa a classe trabalhadora, principalmente as mulheres e crianças. E se
uma tal legislação não condiz de todo nem em toda a parte com as normas de Leão
XIII, não se pode contudo negar haver nela muitas reminiscências da
encíclica « Rerum
novarum » e que à mesma por conseguinte se deve atribuir em grande
parte a melhorada condição dos operários.
3. - ACÇÃO DOS INTERESSADOS
Mostra enfim muito prudentemente
o Pontífice, que os patrões e os próprios operários podem fazer muito nesta
matéria, « com as instituições destinadas a levar auxílio oportuno aos
indigentes e a aproximar mais uma classe da outra ». (20)
Entre estas dá Leão XIII o primeiro lugar às associações que abrangem quer
somente os operários, quer operários e patrões; e alarga-se em recomendá-las e
ilustrá-las, declarando a sua natureza, razão de ser, conveniência, direitos,
deveres, leis, com sabedoria verdadeiramente admirável.
Nem estes ensinamentos podiam vir
em ocasião mais oportuna : com efeito nesse tempo os que tinham na mão em
muitas nações o leme do Estado, totalmente impregnados de liberalismo, não só
não eram favoráveis às associações operárias, mas até abertamente as
hostilizavam ; e quando reconheciam de boa vontade e tutelavam instituições
análogas entre outras classes, negavam com injustiça flagrante o direito
natural de associação àqueles, que mais necessitavam dele, para se defender das
vexações dos poderosos ; nem faltou ainda mesmo entre os católicos quem visse
de maus olhos, acoimando-os de socialistas ou anárquicos, os esforços dos operários
em associar-se.
A) Associações operárias
São por tanto dignas dos maiores
encómios as normas emanadas da autoridade de Leão XIII, que lograram derribar
tais obstáculos, e desfazer tais suspeitas ; mas tornaram-se ainda mais
importantes, por terem exortado os operários cristãos a associarem-se segundo
os vários misteres, ensinando-lhes o meio de o conseguirem, e por terem ainda
consolidado no caminho do dever muitos, a quem as associações socialistas
seduziam fortemente, apregoando-se a si mesmas únicos defensores e
propugnadores dos humildes e oprimidos.
Quanto à erecção destas
associações, a encíclica « Rerum
novarum» observa muito a propósito, « que as corporações devem
organizar-se e governar-se de modo que forneçam a cada um de seus membros os
meios mais fáceis e expeditos para conseguirem seguramente o fim proposto, isto
é : a maior cópia possível, para cada um, de bens do corpo, do espírito e da
fortuna »; porém é claro « que sobretudo se deve ter em vista, como mais
importante, a perfeição moral e religiosa; e que por ela se deve orientar todo
o regulamento destas sociedades ». (21)
Com efeito « constituída assim a religião como fundamento de todas as leis
sociais, não é difícil determinar as relações que devem existir entre os
membros para que possam viver em paz e prosperar . (22)
Desejosos de levar a efeito a
aspiração de Leão XIII, muitos do clero e do laicado dedicaram-se por toda a
parte com louvável empenho a fundar estas associações; as quais protegidas pela
religião, embebidas do seu espírito, formaram operários verdadeiramente
cristãos, que uniam em boa harmonia o exercício diligente da própria arte com
os preceitos salutares da religião e defendiam eficaz e tenazmente os próprios
direitos e interesses temporais, tendo sempre em conta a justiça e o sincero
desejo de colaborar com as outras classes para a restauração cristã de toda a
vida social.
Diverso segundo as várias
circunstâncias locais foi o esforço em realizar os desígnios e as normas de
Leão XIII. De facto nalgumas regiões a mesma associação abraçava todos os fins
visados pelo Pontífice ; noutras ao contrário chegou-se a uma certa divisão de
actividade; e formaram-se associações distintas, umas para zelar os direitos e
interesses legítimos dos sócios nos contractos de trabalho, outras para
organizar o mútuo auxílio económico, outras finalmente para o desempenho dos
deveres religiosos e morais e de outras obrigações análogas.
Este segundo método prevaleceu
sobretudo nos países, onde as leis pátrias, as instituições económicas, ou a
discórdia de inteligências e corações tão deploravelmente enraizada na
sociedade moderna ou ainda a, necessidade urgente de opor uma frente única aos
inimigos da ordem, impediam aos católicos a fundação de sindicatos próprios.
Num tal estado de coisas os católicos vêem-se quase obrigados a inscrever-se em
sindicatos neutros, uma vez que façam profissão de justiça e equidade e deixem
aos sócios católicos plena liberdade de obedecer à própria consciência e
cumprir os preceitos da Igreja. Pertence aos Bispos, se reconhecerem que tais
associações são impostas pelas circunstâncias e não oferecem perigo para a
religião, permitir que os operários católicos se inscrevam nelas, observando
contudo a este respeito as normas e precauções recomendadas por Nosso Predecessor
Pio X, de santa memória. (23)
Primeira e a mais importante é, que ao lado dos sindicatos existam sempre
outros grupos com o fim de dar a seus membros uma séria formação religiosa e
moral, para que eles depois infiltrem nas organizações sindicais o bom espírito
que deve animar toda a sua actividade. Sucederá assim que estes grupos
exercerão benéfica influencia mesmo fora do próprio âmbito.
Por isso deve atribuir-se à
encíclica Leoniana o terem florescido tanto por toda a parte estas associações
operárias, que já hoje, apesar de serem, infelizmente, ainda inferiores em
número às dos socialistas e comunistas, agrupam notável multidão de sócios e
podem defender energicamente os direitos e aspirações legítimas do operariado
católico e propugnar os salutares princípios da sociedade cristã, quer
fronteiras a dentro da pátria, quer em congressos internacionais.
B) Associações não operárias
Acresce ao sobredito, que a
doutrina relativa ao direito natural de associação tão sabiamente exposta e com
tanto valor defendida por Leão XIII, começou naturalmente a aplicar-se também a
associações não operárias; pelo quê deve-se em grande parte mesma encíclica,
que até entre os agricultores e outros membros da classe média se vejam
florescer e multiplicar de dia para dia estas utilíssimas corporações e outros
institutos similares, que aliam felizmente os interesses económicos à formação
espiritual.
C) Associações de industriais
E se não pode dizer-se o mesmo
das associações que o Nosso Predecessor tão ardentemente desejava ver
instituídas entre patrões e industriais, e que lamentamos sejam tão poucas, não
deve isso atribuir-se completamente à má vontade dos homens, mas a dificuldades
muito maiores que se opõem à sua realização, dificuldades que Nós muito bem
conhecemos e avaliamos na devida conta. Temos porém segura esperança de que
para breve até essas dificuldades desaparecerão e saudamos já com íntimo júbilo
da alma alguns esforços envidados com vantagem neste particular, cujos frutos
abundantes prometem messe ainda mais copiosa para o futuro. (24)
CONCLUSÃO:
A « MAGNA CHARTA » DOS OPERÁRIOS
Todos estes benefícios da
encíclica de Leão XIII que Nós, veneráveis Irmãos e amados Filhos, acabamos de
recordar, acenando-os mais do que descrevendo-os, são tais e tão grandes, que
mostram claramente como o imortal documento não era apenas a expressão de um
ideal magnífico mas irrealizável. Ao contrário o Nosso ilustre Predecessor
hauriu no Evangelho, e portanto numa fonte sempre viva e vivificante a doutrina
que pode, senão resolver já de vez, ao menos abrandar muito a luta fatal em que
mutuamente se digladia a família humana. Os frutos de salvação recolhidos pela
Igreja de Cristo e por todo o género humano, com a graça de Deus, mostram bem
que a boa. semente, espalhada há quarenta anos em tão larga cópia, caiu em
grande parte numa terra fértil ; nem é temeridade afirmar que a encíclica de
Leão XIII se demonstrou com a longa experiência do tempo a « Magna Charta » em
que deve basear-se como em sólido fundamento toda a actividade cristã no campo
social. Por isso os que mostram fazer pouco da mesma encíclica e da sua
comemoração, estes ou blasfemam do que não conhecem, ou não percebem nada do
que conhecem, ou, se percebem, praticam uma solene injustiça, e ingratidão.
Mas como durante estes anos
surgiram dúvidas sobre a recta interpretação de vários passos da encíclica ou
sobre as consequências a deduzir deles, dando ocasião entre os próprios
católicos a discussões nem sempre amigáveis ; e como por outra parte as novas
exigências do nosso tempo e as mudadas condições sociais tornam necessária uma
aplicação mais esmerada da doutrina Leoniana e mesmo algumas adições,
aproveitamos de boa vontade esta ocasião, para, em virtude do Nosso múnus
Apostólico, que a todos Nos faz devedores, (25)
satisfazermos, quanto é da Nossa parte, a estas dúvidas e exigências.
II.
AUTORIDADE
DA IGREJA NA QUESTÃO SOCIAL E ECONÓMICA
Mas antes de entrarmos neste
assunto, devemos pressupor, o que já provou abundantemente Leão XIII, que
julgar das questões sociais e económicas é dever e direito da Nossa suprema
autoridade. (26)
Não foi é certo confiada à Igreja, a missão de encaminhar os homens à conquista
de uma felicidade apenas transitória e caduca, mas da eterna; antes « a Igreja
crê não dever intrometer-se sem motivo nos negócios terrenos ». (27)
O que não pode, é renunciar ao ofício de que Deus a investiu, de interpor a sua
autoridade não em assuntos técnicos, para os quais lhe faltam competência e
meios, mas em tudo o que se refere à moral. Dentro deste campo, o depósito da
verdade que Deus Nos confiou e o gravíssimo encargo de divulgar toda a lei
moral, interpretá-la e urgir o seu cumprimento oportuna e importunamente,
sujeitam e subordinam ao Nosso juízo a ordem social e as mesmas questões
económicas.
Pois ainda que a economia e a
moral « se regulam, cada uma no seu âmbito, por princípios próprios », (28)
é erro julgar a ordem económica e a moral tão encontradas e alheias entre si,
que de modo nenhum aquela dependa desta. Com efeito, as chamadas leis
económicas, deduzidas da própria natureza das coisas e da índole do corpo e da
alma, determinam os fins que a actividade humana se não pode propor, e os que
pode procurar com todos os meios no campo económico ; e a. razão mostra
claramente, da mesma natureza das coisas e da natureza individual e social do
homem, o fim imposto pelo Criador a toda a ordem económica.
Por sua parte a lei moral
manda-nos prosseguir tanto o fim supremo e último em todo o exercício da nossa
actividade, como, nos diferentes domínios por onde ela se reparte, os fins
particulares impostos pela natureza, ou melhor, por Deus autor da mesma;
subordinando sempre estes fins aquele, como pede a boa ordem. Se seguirmos
fielmente esta regra, sucederá, que os fins particulares da economia, sejam
eles individuais ou sociais, se inserirão facilmente na ordem geral dos fins, e
nós subindo por eles, como por uma escada, chegaremos ao fim último de todos os
seres, que é Deus, bem supremo e inexaurível para si e para nós.
1. - DO DIREITO DE PROPRIEDADE
Para vir agora ao particular,
começamos pelo direito de propriedade. Sabeis, veneráveis Irmãos e amados
Filhos, que Leão XIII de feliz memória defendeu tenazmente o direito de
propriedade contra as aberrações dos socialistas do seu tempo, mostrando que a
destruição do domínio particular reverteria, não em vantagem, mas em ruína da
classe operária. Mas como não falta quem com flagrante injustiça calunie o Sumo
Pontífice e a Igreja de ter zelado e zelar somente os interesses dos ricos
contra os proletários, e os mesmos católicos não concordam na interpretação do
genuíno e verdadeiro modo de pensar de Leão XIII, pareceu-Nos bem vingar de
tais calúnias a sua doutrina que é a católica e defendê-la de falsas
interpretações.
Sua índole individual e social
Primeiramente tenha-se por certo,
que nem Leão XIII, nem os teólogos, que ensinaram seguindo a doutrina e
direcção da Igreja, negaram jamais ou puseram em dúvida a dupla espécie de
domínio, que chamam individual e social, segundo diz respeito ou aos
particulares ou ao bem comum ; pelo contrário foram unânimes em afirmar que a
natureza ou o próprio Criador deram ao homem o direito do domínio particular,
não só para que ele possa prover às necessidades próprias e da família, mas
para que sirvam verdadeiramente ao seu fim os bens destinados pelo Criador a
toda a família humana : ora nada disto se pode obter, se não se observa uma
ordem certa e bem determinada.
Deve portanto evitar-se
cuidadosamente um duplo escolho, em que se pode cair. Pois como o negar ou
cercear o direito de propriedade social e pública precipita no chamado «
individualismo » ou dele muito aproxima, assim também rejeitar ou atenuar o
direito de propriedade privada ou individual leva rapidamente ao « colectivismo
» ou pelo menos à necessidade de admitir-lhe os princípios. Sem a luz destas
verdades ante os olhos, cair-se-á depressa nas sirtes do modernismo moral,
jurídico e social, que denunciámos com letras Apostólicas no princípio do Nosso
Pontificado; (29)
tenham-no presente sobretudo aqueles espíritos desordeiros, que com infames
calúnias ousam acusar a Igreja de ter permitido, que se introduzisse na
doutrina teológica o conceito pagão do domínio, ao qual desejam a todo o custo
substituir outro, por eles com pasmosa ignorância apelidado de cristão.
Obrigações inerentes ao domínio
E a fim de pôr termo às
controvérsias, que acerca do domínio e deveres a ele inerentes começaram a
agitar-se, note-se em primeiro lugar o fundamento assente por Leão XIII, de que
o direito de propriedade é distinto do seu uso. (30)
Com efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservar inviolável a
divisão dos bens e a não invadir o direito alheio excedendo os limites do
próprio domínio; que porém os proprietários não usem do que é seu, senão
honestamente, é da alçada não da justiça, mas de outras virtudes, cujo
cumprimento « não pode urgir-se por vias jurídicas ». (31)
Pelo quê sem razão afirmam alguns, que o domínio e o seu honesto uso são uma e
a mesma coisa; e muito mais ainda é alheio à verdade dizer, que se extingue ou
se perde o direito de propriedade com o não uso ou abuso dele.
Prestam portanto grande serviço à
boa causa e são dignos de todo o elogio os que, salva a concórdia dos ânimos e
a integridade da doutrina tradicional da Igreja, se empenham em definir a
natureza íntima destas obrigações e os limites, com que as necessidades do
convívio social circunscrevem tanto o direito de propriedade, como o uso ou
exercício do domínio. Pelo contrário muito se enganam e erram aqueles, que
tentam reduzir o domínio individual a ponto de o abolirem praticamente.
Poderes do Estado
Efectivamente, que deva o homem
atender não só ao próprio interesse, mas também ao bem comum, deduz-se da
própria índole, a um tempo individual e social, do domínio, a que nos
referimos. Definir porém estes deveres nos seus pormenores e segundo as
circunstâncias, compete, já que a lei natural de ordinário o não faz, aos que
estão à frente do Estado. E assim a autoridade pública, iluminada sempre pela
luz natural e divina, e pondo os olhos só no que exige o bem comum, pode
decretar mais minuciosamente o que aos proprietários seja lícito ou ilícito no
uso de seus bens. Já Leão XIII ensinou sabiamente que « Deus confiou à
indústria dos homens e às instituições dos povos a demarcação da propriedade
individual ». (32)
E realmente o regime da propriedade não é mais imutável, que qualquer outra
instituição da vida social, como o demonstra a história e Nós mesmo notámos em
outra ocasião : « Que variedade de formas concretas não revestiu a propriedade
desde a forma primitiva dos povos selvagens, de que ainda há hoje vestígios,
até à forma de propriedade dos tempos patriarcais, e depois sucessivamente
desde as diversas formas tirânicas (usamos esta palavra no seu sentido
clássico), através das feudais e logo das monárquicas, até às formas existentes
na idade moderna »! (33)
É evidente porém que a autoridade pública não tem direito de desempenhar-se
arbitrariamente desta função; devem sempre permanecer intactos o direito
natural de propriedade e o que tem o proprietário de legar dos seus bens. São
direitos estes, que ela não pode abolir, porque « o homem é anterior ao Estado
», (34)
e « a sociedade doméstica tem sobre a sociedade civil uma prioridade lógica e
uma prioridade real ». (35)
Eis porque o sábio Pontífice declarava também, que o Estado não tem direito de
esgotar a propriedade particular com excessivas contribuições : « Não é das
leis humanas, mas da natureza, que dimana o direito da propriedade individual;
a autoridade pública não a pode portanto abolir : o mais que pode é moderar-lhe
o uso e harmonizá-lo com o bem comum ». (36)
Quando ela assim concilia o direito de propriedade com as exigências do bem
comum, longe de mostrar-se inimiga dos proprietários presta-lhes benévolo
apoio; de facto, fazendo isto, impede eficazmente que a posse particular dos
bens, estatuída com tanta sabedoria pelo Criador em vantagem da vida humana,
gere desvantagens intoleráveis e venha assim a arruinar-se : não oprime a
propriedade, mas defende-a; não a enfraquece, mas reforça-a.
Deveres relativos aos rendimentos
livres
Nem ficam de todo ao arbítrio do
homem os seus rendimentos livres, isto é aqueles de que não precisa para
sustentar a vida convenientemente e com decoro : ao contrário as sagradas
Escrituras e os santos Padres da Igreja intimam continuamente e com a maior
clareza aos ricos o gravíssima dever da esmola e de praticar a beneficência e
magnificência. Empregar grandes capitais disponíveis para oferecer em
abundância trabalho lucrativo, com tanto que este se empregue em obras
realmente úteis, não só não é vício ou imperfeição moral, mas até se deve julgar
acto preclaro da virtude da magnificência muito em harmonia com as necessidades
dos tempos, como se deduz argumentando dos princípios do Doutor Angélico. (37)
Títulos de aquisição do domínio
Títulos de aquisição do domínio
são a ocupação de coisas sem dono, a indústria ou a chamada especificação, como
o demonstram abundantemente a tradição de todos os séculos e a doutrina do
Nosso Predecessor Leão XIII. De facto não faz injustiça a ninguém, por mais que
alguns digam o contrário, quem se apodera de uma coisa abandonada ou sem dono;
de outra parte a indústria que alguém exerce em nome próprio, e com a qual as
coisas se transformam ou aumentam de valor, dá-lhe direito sobre os produtos do
seu trabalho.
Capital e trabalho
Muito diversa é a condição do
trabalho, que vendido a outrem se exerce em coisa alheia. A ele particularmente
visava Leão XIII, quando escrevia « poder-se afirmar sem perigo de erro, que o
trabalho é a fonte única da riqueza nacional ». (38)
Com efeito, não vemos com os próprios olhos, que a abundância dos bens, que
constituem a riqueza, se formam e brotam das mãos dos obreiros, quer trabalhem
sós, quer armadas de instrumentos e máquinas, com o que aumentam admiravelmente
a sua actividade? Ninguém ignora, que nunca um país se ergueu da miséria e
pobreza a uma fortuna melhor e mais elevada sem a colaboração ingente de todos
os cidadãos, tanto dos que dirigem o trabalho, como dos que o executam. Não é
porém menos certo que estes grandes esforços seriam imiteis e vãos, que nem
sequer poderiam tentar-se, se Deus Criador do universo não tivesse na sua
bondade fornecido antes as matérias primas e as forças da natureza. Pois que é
trabalhar, senão aplicar ou exercer as forças do corpo e do espírito nestas
mesmas coisas ou por meio delas? Exige porém a lei natural ou a vontade de Deus
por ela promulgada, que se mantenha a devida ordem na aplicação dos bens
naturais aos usos humanos : ora semelhante ordem consiste em ter cada coisa o
seu dono. D'aqui vem que, a não ser que um trabalhe no que é seu, deverão
aliar-se as forças de uns com as coisas dos outros; pois que umas sem as outras
nada produzem. Isto precisamente tinha em vista Leão XIII, quando escrevia : «
de nada vale o capital sem o trabalho, nem o trabalho sem o capital ». (39)
Por conseguinte é inteiramente falso atribuir ou só ao capital ou só ao
trabalho o produto do concurso de ambos; e é injustíssimo que um deles, negando
a eficácia do outro, se arrogue a si todos os frutos.
Pretensões injustas do capital
É certo que por muito tempo pôde
o capital arrogar-se direitos demasiados. Todos os produtos e todos os lucros
reclamava-os ele para si, deixando ao operário unicamente o bastante para
restaurar e reproduzir as forças. Apregoava-se, que por fatal lei económica
pertencia aos patrões acumular todo o capital, e que a mesma lei condenava e
acorrentava os operários a perpétua pobreza e vida miserável. E bem verdade,
que as obras nem sempre estavam de acordo com semelhantes monstruosidades dos
chamados liberais de Manchester : não se pode contudo negar que para elas
tendia com passo certeiro e constante o regime económico e social. Por isso não
é para admirar que estas opiniões erróneas e estes postulados falsos fossem
energicamente impugnados, e não só por aqueles a quem privavam do direito
natural de adquirir melhor fortuna.
Injustas pretensões do trabalho
De facto aos operários assim mal
tratados apresentaram-se os chamados « intelectuais », contrapondo a uma lei falsa
um não menos falso princípio moral : « os frutos e rendimentos, descontado
apenas o que baste a amortizar e reconstituir o capital, pertencem todos de
direito aos operários ». Erro mais capcioso que o de alguns socialistas, para
os quais tudo o que é produtivo deve passar a ser propriedade do Estado ou «
socializar-se »; mas por isso mesmo erro muito mais perigoso e próprio a embair
os incautos : veneno suave que tragaram avidamente muitos, a quem o socialismo
sem rebuço não pudera enganar.
Princípio directivo da justa
distribuição
A premuni-los contra estes falsos
princípios, com que a si próprios fechavam o caminho da justiça e da paz,
deviam bastar as palavras sapientíssimas do Nosso Predecessor : « de qualquer
modo que seja distribuída entre os particulares, não cessa a terra de servir à
utilidade pública ». (40)
O mesmo ensinámos Nós pouco antes, quando declarávamos, que a própria natureza
exige a repartição dos bens em domínios particulares, precisamente a fim de
poderem as coisas criadas servir ao bem comum de modo ordenado e constante.
Este princípio deve ter continuamente diante dos olhos, quem não quer
desviar-se da recta senda da verdade.
Ora nem toda a distribuição dos
bens ou riquezas entre os homens é apta para obter totalmente ou com a devida
perfeição o fim estabelecido por Deus. E necessário que as riquezas, em contínuo
incremento com o progresso da economia social, sejam repartidas pelos
indivíduos ou pelas classes particulares de tal maneira, que se salve sempre a
utilidade comum, de que falava Leão XIII, ou, por outras palavras, que em nada
se prejudique o bem geral de toda a sociedade. Esta lei de justiça social
proíbe, que uma classe seja pela outra excluída da participação dos lucros.
Violam-na por conseguinte tanto os ricos que, felizes por se verem livres de
cuidados em meio da sua fortuna, têm por muito natural embolsarem eles tudo e
os operários nada, como a classe proletária que, irritada por tantas injustiças
e demasiadamente propensa a exagerar os próprios direitos, reclama para si
tudo, porque fruto do trabalho das suas mãos, e combate e pretende suprimir toda
a propriedade e rendas ou proventos, qualquer que seja a sua natureza e função
social, uma vez que se obtenham e pela simples razão de serem obtidos sem
trabalho. A este propósito cita-se às vezes o Apóstolo, lá onde diz : « quem
não quer trabalhar, não coma ». (41)
Citação descabida e falsa. O Apóstolo repreende os ociosos, que podendo e
devendo trabalhar, não o fazem, e admoesta-nos a que aproveitemos
diligentemente o tempo e as forças do corpo e do espírito, nem queiramos ser de
peso aos outros, quando podemos bastar-nos a nós mesmos. Agora, que o trabalho
seja o único título para receber o sustento ou perceber rendimentos, isso não o
ensina, nem podia ensinar o Apóstolo. (42)
Cada um deve pois ter a sua parte
nos bens materiais; e deve procurar-se que a sua repartição seja pautada pelas
normas do bem comum e da justiça social. Hoje porém, à vista do contraste
estridente, que há entre o pequeno número dos ultra-ricos e a multidão
inumerável dos pobres, não há homem prudente, que não reconheça os gravíssimos
inconvenientes da actual repartição da riqueza.
3. - REDENÇÃO DOS PROLETÁRIOS
Esta é aquela « Redenção dos
proletários », que o Nosso Predecessor dizia dever procurar-se a todo o custo.
O mesmo afirmamos e repetimos Nós com tanto maior energia e insistência, quanto
mais frequentemente vemos votadas ao esquecimento as recomendações daquele
grande Pontífice, ou porque intencionalmente se não falava, delas, ou porque as
julgavam impossíveis de actuar, sendo que não só podem, mas devem realizar-se.
Nem elas no nosso tempo perderam nada da aia, força e oportunidade, apesar de
hoje não ser tão geral e horrendo o pauperismo, como era ao tempo de Leão XIII.
Sem dúvida que a condição dos operários melhorou e se tornou mais tolerável,
sobretudo nas cidades mais progredidas e populosas, onde os operários já não
podem todos sem excepção ser considerados como indigentes e miseráveis. Mas
desde que as artes mecânicas e a indústria moderna em pouquíssimo tempo
invadiram completamente e dominaram regiões inumeráveis, tanto as terras
chamadas novas, como os reinos do remoto Oriente cultivados já na antiguidade,
cresceu desmesuradamente o número dos proletários pobres, cujos gemidos bradam
ao céu. Acresce o ingente exército dos jornaleiros relegados à ínfima condição
e sem a mínima esperança de se verem jamais senhores de um pedaço de terra; (43)
se não se empregam remédios oportunos e eficazes, ficarão perpetuamente na
condição de proletários.
É verdade, que a condição
proletária não se deve confundir com o pauperismo; contudo basta o facto de a
multidão dos proletários ser imensa, enquanto as grandes fortunas se acumulam
nas mãos de poucos ricos, para provar à evidência que as riquezas, produzidas
em tanta abundância neste nosso século de industrialismo, não estão bem
distribuídas pelas diversas classes da sociedade.
Os operários devem poder formar
um património
É pois necessário envidar
energicamente todos os esforços, para que ao menos de futuro as riquezas
grangeadas se acumulem em justa proporção nas mãos dos ricos, e com suficiente
largueza se distribuam pelos operários; não para que estes se dêem ao ócio, —
já que o homem nasceu para trabalhar como a ave para voar, — mas para que,
vivendo com parcimônia, aumentem os seus haveres, aumentados e bem administrados
provejam aos encargos da família; e livres assim de uma condição precária e
incerta qual é a dos proletários, não só possam fazer frente a todas as
eventualidades durante a vida, mas deixem ainda por morte alguma coisa, aos que
lhes sobrevivem.
Toda esta doutrina já por Nosso
Predecessor, não só insinuada, mas abertamente proclamada, Nós de novo e com
mais insistência a inculcamos com esta Nossa encíclica : pois desenganem-se
todos, que se não se põe em prática quanto antes e com todas as veras, será
impossível defender eficazmente a ordem pública, a paz e a tranquilidade da
sociedade humana contra os maquinadores de revoluções.
4. - O JUSTO SALÁRIO
Ora não se poderá pôr em prática,
se não se procura, que os proletários, trabalhando e vivendo com parcimónia,
adquiram o seu modesto pecúlio, como já acima indicamos desenvolvendo os
ensinamentos de Nosso Predecessor. Mas, a não ser da própria jorna, d'onde
poderá tirar esse pouco que vai economizando, o que não tem outra fonte de
receita senão o seu trabalho? Entremos portanto nesta questão do salário, que
Leão XIII apelidou « de grande importância », (44)
declarando e desenvolvendo, onde for necessário, a sua doutrina e preceitos.
O salário não é de sua natureza
injusto
E primeiramente os que dizem ser
de sua natureza injusto o contrato de compra e venda do trabalho e pretendem substituí-lo
por um contrato de sociedade, dizem um absurdo e caluniam malignamente o Nosso
Predecessor que na encíclica « Rerum
novarum » não só admite a legitimidade do salário, mas se difunde em
regulá-lo segundo as leis da justiça.
Julgamos contudo que nas
presentes condições sociais é preferível, onde se possa, mitigar os contratos
de trabalho combinando-os com os de sociedade, como já começou a fazer-se de
diversos modos com não pequena vantagem dos operários e dos patrões. Deste modo
operários e oficiais são considerados sócios no domínio ou na gerência, ou
compartilham os lucros.
O justo valor da paga deve ser
avaliado não por um, senão por vários princípios, como sabiamente dizia Leão
XIII por estas palavras : « para determinar equitativamente o salário devem
ter-se em vista várias considerações ». (45)
Com estas palavras confuta a
leviandade dos que pensam resolver facilmente tão momentoso problema,
empregando uma única medida e essa mesma disparatada.
Erram certamente os que não
receiam enunciar este princípio, que tanto vale o trabalho e tanto deve
importar a paga, quanto é o valor dos seus frutos; e que por isso na locação do
próprio trabalho tem o operário direito de exigir por ele tudo o que produzir.
Asserção infundada, como basta a demonstrá-lo o que acima dissemos ao tratar da
relação entre o trabalho e o capital.
Carácter individual e social do
trabalho
Como o domínio, assim também o
trabalho, sobretudo o contratado, deve considerar-se não só relativamente aos
indivíduos, mas também em função da sociedade. A razão é clara. Se a sociedade
não forma realmente um corpo organizado, se a ordem social e jurídica não
protege o exercício da actividade, se as várias artes, dependentes como são
entre si, não trabalham de concerto e não se ajudam mutuamente, se enfim e mais
ainda, não se associam e colaboram juntos a inteligência, o capital, e o
trabalho, não pode a actividade humana produzir fruto : logo não pode ela ser
com justiça avaliada nem remunerada equitativamente, se não se tem em conta a
sua natureza social e individual.
Tríplice relação do salário
Destas duas propriedades naturais
do trabalho humano derivam consequências gravíssimas, pelas quais se deve regular
e determinar o salário.
A) O sustento do operário e da
família
Primeiro ao operário deve dar-se
remuneração que baste para o sustento seu e da família. (46)
É justo que toda a mais família, na medida das suas forças, contribua para o
seu mantimento, como vemos que fazem as famílias dos lavradores, e também
muitas de artistas e pequenos negociantes. Mas é uma iniquidade abusar da idade
infantil ou da fraqueza feminina. As mães de família devem trabalhar em casa ou
nas suas adjacências, dando-se aos cuidados domésticos. É um péssimo abuso, que
deve a todo o custo cessar, o de as obrigar, por causa da mesquinhez do salário
paterno, a ganharem a vida fora das paredes domésticas, descurando os cuidados
e deveres próprios e sobretudo a educação dos filhos. Deve pois procurar-se com
todas as veras, que os pais de família recebam uma paga bastante a cobrir as
despesas ordinárias da casa. E se as actuais condições não permitem, que isto
se possa sempre efectuar, exige contudo a justiça social, que se introduzam
quanto antes as necessárias reformas, para que possa assegurar-se um tal
salário a todo o operário adulto. — São pois dignos de louvor todos aqueles,
que com prudente e utilíssima iniciativa tem já experimentado vários métodos
para tornar o salário proporcionado aos encargos domésticos de tal modo que,
aumentando estes, cresça também aquele; antes seja tal, que possa bastar a
qualquer necessidade extraordinária e imprevista.
B) Situação da empresa
É preciso atender também ao
empresário e a empresa no determinar a importância dos salários; seria
injustiça exigir salários demasiados, que eles não pudessem pagar sem se
arruinarem e arruinarem consigo os operários. Mas se a deficiência dos lucros
dependesse da negligência, inércia, ou descuido em procurar o progresso técnico
e económico, não seria essa uma causa justa para cercear a paga aos operários.
Se porém a causa de a empresa não render quanto baste para retribuir aos
operários equitativamente, são contribuições injustas ou o ver-se forçada a
vender os artefactos por um preço inferior ao justo, os que assim a vexam,
tornam-se réus de culpa grave; pois que privam do justo salário os
trabalhadores, que forçados da necessidade se vêem obrigados a aceitar uma paga
inferior à devida.
Trabalhem por conseguinte de
comum acordo operários e patrões para vencer as dificuldades e obstáculos, e
sejam em obra tão salutar ajudados prudente e providamente pela autoridade
pública. Mas se apesar de tudo os negócios correrem mal, será então o caso de
ver se a empresa poderá continuar, ou se será melhor prover aos operários de
outro modo. Nessas gravíssimas conjunturas é, mais que nunca, necessário, que
reine e se sinta entre operários e patrões a união e concórdia cristã.
C) Exigências do bem comum
Enfim a grandeza do salário deve
ser proporcionada ao bem da economia pública. Já atrás declarámos, quanto importa
ao bem comum, que os operários e oficiais possam formar um modesto pecúlio com
a parte do salário economizada. Mas não podemos passar em silêncio outro ponto
de não menor importância e grandemente necessário nos nossos tempos, e é, que
todos os que têm vontade e forças, possam encontrar trabalho. Ora isto depende
em boa parte da determinação do salário : a qual como será vantajosa, se bem
feita, assim se tornará nociva, se exceder os devidos limites. Quem não sabe,
que foram os salários demasiadamente pequenos ou exageradamente grandes a causa
de muitos operários se verem sem trabalho? É este mal, formidavelmente agravado
nos anos do nosso Pontificado, que lança aos operários nas maiores misérias e
tentações, que arruína a prosperidade dos estados e põe em perigo a ordem
pública, a paz e tranquilidade do mundo inteiro. É portanto contra a justiça
social diminuir ou aumentar demasiadamente os salários em vista só das próprias
conveniências e sem ter em conta o bem comum; e a mesma justiça exige, que em pleno
acordo de inteligências e vontades, quanto seja possível, se regulem os
salários de tal modo, que o maior número de operários possa encontrar trabalho
e ganhar o necessário para o sustento da vida. É também importante para o mesmo
efeito a boa proporção entre as diversas categorias de salários; com a qual
está intimamente relacionada a justa proporção entre os preços de venda dos
produtos das diversas artes, como a agricultura, a indústria, etc. Se tudo isto
se observar como convêm, unir-se-ão as diversas artes e se organizarão num
corpo união, prestando-se como membros mútuo e benéfico auxílio. Só então
estará solidamente constituído o organismo económico e social e será capaz de
obter os seus fins, quando todos e cada um tiverem todos os bens, que as riquezas
naturais, a arte técnica, e a boa administração económica podem proporcionar.
Estes bens devem bastar não só à estrita necessidade e à honesta comodidade,
senão também a elevar o homem a um certo grau de cultura, o qual, uma vez que
não falte a prudência, longe de obstar, grandemente favorece a virtude. (47)
5. - RESTAURAÇÃO DA ORDEM SOCIAL
O que fica exposto sobre a
equitativa repartição dos bens e sobre o justo salário, diz respeito aos
indivíduos, nem visa senão acessóriamente a ordem social, que o Nosso
Predecessor Leão XIII desejou e procurou restaurar pelos princípios da sã
filosofia e aperfeiçoar segundo as normas sublimes da lei evangélica.
Já alguma coisa se fez neste
sentido; mas para realizar o muito que ainda está por fazer e para que a
família humana colha vantagens melhores e mais abundantes, são de absoluta
necessidade duas coisas : a reforma das instituições e a emenda dos costumes.
Ao falarmos na reforma das
instituições temos em vista sobretudo o Estado; não porque dele só deva
esperar-se todo o remédio, mas porque o vício do já referido « individualismo »
levou as coisas a tal extremo, que enfraquecida e quase extinta aquela vida
social outrora rica e harmónicamente manifestada em diversos géneros de
agremiações, quase só restam os indivíduos e o Estado. Esta deformação do
regime social não deixa de prejudicar o próprio Estado, sobre o qual recaem
todos os serviços das agremiações suprimidas e que verga ao peso de negócios e
encargos quase infinitos.
Verdade é, e a história o
demonstra abundantemente, que, devido à mudança de condições, só as grandes
sociedades podem hoje levar a efeito o que antes podiam até mesmo as pequenas;
permanece contudo imutável aquele solene princípio da filosofia social : assim
como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efectuar com a própria
iniciativa e indústria, para o confiar à colectividade, do mesmo modo passar
para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores
podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem
social. O fim natural da sociedade e da sua acção é coadjuvar os seus membros,
não destruí-los nem absorvê-los.
Deixe pois a autoridade pública
ao cuidado de associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que
a absorveriam demasiado; poderá então desempenhar mais livre, enérgica e
eficazmente o que só a ela compete, porque só ela o pode fazer : dirigir,
vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram.
Persuadam-se todos os que governam : quanto mais perfeita ordem jerárquica
reinar entre as varias agremiações, segundo este princípio da função «
supletiva » dos poderes públicos, tanto maior influência e autoridade terão
estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da nação.
Harmonia entre as diversas
profissões
O primeiro objectivo que devem
propor-se tanto o Estado como o escol dos cidadãos, o ponto em que devem
concentrar todos os esforços, é por termo ao conflito, que divide as classes,
suscitar e promover uma cordial harmonia entre as diversas profissões.
E em primeiro lugar deve a
política social aplicar-se toda a reconstituí-las. Actualmente a sociedade
continua num estado violento e por isso instável e vacilante, pois se funda
sobre classes, que se movem por apetites desencontrados e por isso, dada a
fraqueza humana, com facilidade tendem para o ódio e para a guerra.
Com efeito embora o trabalho,
como muito bem expôs o Nosso Predecessor na sua encíclica , (48)
não seja um simples género comercial, mas deva reconhecer-se nele a dignidade humana
do operário, e não possa permutar-se como qualquer mercadoria, de facto hoje no
mercado do trabalho a oferta e a procura dividem os contratadores em duas
classes ou campos opostos, que encarniçadamente se digladiam. Esta grave
desordem leva a sociedade à ruína, se não se lhe dá pronto e eficaz remédio.
Mas a cura só então será perfeita, quando a estas classes opostas, se
substituírem organismos bem constituídos, ordens ou profissões, que agrupem os
indivíduos, não segundo a sua categoria no mercado do trabalho, mas segundo as
funções sociais, que desempenham. Assim como as relações de vizinhança dão
origem aos municípios, assim os que exercem a mesma profissão ou arte são pela
própria natureza impelidos a formar colégios ou corporações; tanto que muitos
julgam estes organismos autónomos, senão essenciais, ao menos naturais à
sociedade civil.
E como a ordem, segundo
egregiamente explica S. Tomás, (49)
é a unidade resultante da disposição conveniente de muitas coisas, o corpo
social não será verdadeiramente ordenado, se não há um vínculo comum, que una
solidamente num só todo os membros que o constituem. Ora este princípio de
unidade encontra-se, — para cada arte, na produção dos bens ou prestação dos
serviços a que visa a actividade combinada de patrões e operários ocupados no
mesmo ofício, — para o conjunto das profissões, no bem comum, a que todas e
cada uma devem tender com esforços combinados. Esta união será tanto mais forte
e eficaz, quanto mais fielmente se aplicarem os indivíduos e as próprias
profissões a exercitar a sua especialidade e a assinalar-se nela.
Do que precede é fácil concluir,
que no seio destas corporações estão em primeiro lugar os interesses comuns à
profissão; entre os quais o mais importante é vigiar por que a actividade
colectiva se oriente sempre para o bem comum de toda a sociedade. As questões,
que se refiram aos interesses particulares dos patrões ou operários poder-se-ão
tratar e resolver separadamente.
Apenas é preciso recordar, que os
ensinamentos de Leão XIII sobre a forma do governo político se aplicam também
na devida proporção aos colégios ou corporações profissionais : é lícito aos
seus membros eleger a forma que lhes aprouver, com tanto que atendam às
exigências da justiça e do bem comum. (50)
E como os habitantes de um
município costumam formar associações autónomas para fins muito diversos, às
quais cada um é livre de dar ou não o seu nome, assim os que exercem a mesma
profissão, conservam a liberdade de se associarem para fins de algum modo
relacionados com o exercício da sua arte. Mas porque o Nosso Predecessor tratou
distinta e claramente na sua encíclica destas associações livres, basta-Nos
agora inculcar um ponto : os cidadãos podem livremente não só instituir
associações de direito e carácter particular, mas ainda « eleger livremente
para elas aqueles estatutos e regulamentos, que julgarem mais convenientes ao
fim proposto ». (51)
Idêntica liberdade deve reconhecer-se às sociedades, cujo objectivo ultrapassa
os confins das diversas profissões. Proponham-se as associações livres já
florescentes e que tão bons frutos produzem, abrir caminho, segundo os
princípios da filosofia social cristã, a estes colégios ou corporações mais
vastos de que falamos, e ponham todo o empenho, cada uma na medida das suas
forças, em atingir este ideal.
Princípio directivo da economia
Resta ainda outro ponto
estreitamente ligado com o precedente. Como não pode a unidade social basear-se
na luta de classes, assim a recta ordem da economia não pode nascer da livre
concorrência de forças. Deste princípio como de fonte envenenada derivaram para
a economia universal todos os erros da ciência económica « individualista »;
olvidando esta ou ignorando, que a economia é juntamente social e moral, julgou
que a autoridade pública a devia deixar em plena liberdade, visto que no
mercado ou livre concorrência possuía um princípio directivo capaz de a reger
muito mais perfeitamente, que qualquer inteligência criada. Ora a livre
concorrência, ainda que dentro de certos limites é justa e vantajosa, não pode
de modo nenhum servir de norma reguladora à vida económica. Aí estão a
comprová-lo os factos desde que se puseram em prática as teorias de espírito
individualista. Urge por tanto sujeitar e subordinar de novo a economia a um
princípio directivo, que seja seguro e eficaz. A prepotência económica, que
sucedeu à livre concorrência não o pode ser; tanto mais que, indómita e
violenta por natureza, precisa, para ser útil a humanidade, de ser energicamente
enfreada e governada com prudência; ora não pode enfrear-se nem governar-se a
si mesma. Força é portanto recorrer a princípios mais nobres e elevados : à
justiça e caridade sociais. E preciso que esta justiça penetre completamente as
instituições dos povos e toda a vida da sociedade; é sobre tudo preciso que
esse espírito de justiça manifeste a sua. eficácia constituindo uma ordem
jurídica e social que informe toda a economia, e cuja alma seja a caridade. Em
defender e reivindicar eficazmente esta ordem jurídica e social deve insistir a
autoridade pública; e fá-lo-á com menos dificuldade se se desembaraçar daqueles
encargos, que já antes declarámos não serem próprios dela.
Mais : é muito para desejar que
as várias nações, pois que tanto dependem umas das outras e se completam
economicamente, se dêem com todo o empenho, em união de vistas e de esforços, a
promover com prudentes tratados e instituições uma vantajosa e feliz cooperação
económica internacional.
Se deste modo se restaurarem os
membros do corpo social e se restabelecer o princípio regulador da economia,
poder-se-lhe-á aplicar de alguma forma o que o Apóstolo dizia do corpo místico
de Cristo : « todo o corpo organizado e unido pelas articulações de um mútuo
obséquio, segundo a medida de actividade de cada membro, cresce e se desenvolve
na caridade ». (52)
Recentemente iniciou-se, como
todos sabem, uma nova organização sindical e corporativa, à qual, vista a
matéria desta Nossa carta encíclica não podemos deixar de Nos referir, com
alguma consideração oportuna.
O Estado reconheceu juridicamente
o « sindicato », dando-lhe porém carácter de monopólio, já que só ele, assim
reconhecido, pode representar respectivamente operários e patrões, só ele
concluir contractos e pactos de trabalho. A inscrição no sindicato é
facultativa, e só neste sentido se pode dizer, que a organização sindical é
livre; pois a quota sindical e certas taxas especiais são obrigatórias para
todos os que pertencem a uma dada categoria, sejam eles operários ou patrões;
como obrigatórios para todos são também os contratos de trabalho estipulados
pelo sindicato jurídico. Verdade é que nas regiões oficiais se declarou, que o
sindicato jurídico não exclui a existência de facto de associações
profissionais.
As corporações são constituídas
pelos representantes dos sindicatos dos operários e dos patrões pertencentes à
mesma arte e profissão, e, como verdadeiros e próprios órgãos e instituições do
Estado, dirigem e coordenam os sindicatos nas coisas de interesse comum. É
proibida a greve; se as partes não podem chegar a um acordo, intervém a
autoridade.
Basta reflectir um pouco, para
ver as vantagens desta organização, embora apenas sumariamente indicada : a
pacífica colaboração das classes, a repressão das organizações e violências
socialistas, a acção moderadora de uma magistratura especial. Para não omitir
nada em matéria de tanta importância, e em harmonia com os princípios gerais
acima recordados e com o que em breve acrescentaremos, devemos contudo dizer,
que não falta quem receie, que o Estado se substitua às livres actividades, em
vez de se limitar à necessária e suficiente assistência e auxílio; que a nova
organização sindical e corporativa tem carácter excessivamente burocrático e
político; e que, não obstante as vantagens gerais acenadas, pode servir a
particulares intentos políticos mais que à preparação e início de uma ordem
social melhor.
Nós cremos, que para conseguir
este outro intento nobilíssimo, com benefício geral verdadeiro e duradoiro, é
necessária antes de tudo e sobre tudo a bênção de Deus e depois a colaboração
de todas as boas vontades. Cremos também e por necessária consequência, que o
mesmo intento se conseguirá tanto mais seguramente, quanto maior for a
contribuição das competências técnicas., profissionais e sociais, e mais ainda
da doutrina e prática dos princípios católicos por parte, não da Acção Católica
(que não pretende desenvolver actividade meramente sindical ou política), mas
por parte d'aqueles Nossos filhos a quem a Acção Católica admiravelmente forma
naqueles princípios e no seu apostolado sob a guia e magistério da Igreja; da
Igreja, que mesmo no terreno supra acenado, como em qualquer outro onde se
agitem e regulem questões morais, não pode esquecer ou descurar o mandato de
guardar e ensinar, que lhe foi divinamente conferido.
Tudo o que temos ensinado acerca
da restauração e aperfeiçoamento da ordem social, de modo nenhum poderá
realizar-se sem a reforma dos costumes, como até a mesma história
eloquentemente demonstra. De facto houve já uma ordem social que, apesar de
imperfeita e incompleta, era, de algum modo, dadas as circunstâncias e
exigências do tempo, conforme à recta razão. E se essa ordem já de há muito se
extinguiu, não foi de certo por ser incapaz de evolucionar e alargar-se com as
novas condições sociais; mas porque os homens, ou obcecados pelo amor próprio
se recusaram a abrir como convinha, o seio das suas organizações à multidão
sempre crescente, que desejava entrar nelas, ou porque iludidos pela aparência
de uma falsa liberdade e por outros erros, rebeldes a toda a sujeição,
trabalharam por sacudir o jugo de qualquer autoridade.
Só Nos resta por conseguinte
citar de novo a juízo o vigente sistema económico, e o seu mais violento
acusador, o socialismo, para sobre eles proferirmos uma sentença clara e justa;
e ao mesmo tempo, indagada a última raiz de tantos males, apontar o primeiro e
mais necessário remédio, que é a reforma dos costumes.
III.
NOTÁVEIS
MUDANÇAS DESDE A ENCÍCLICA DE LEÃO XIII
Grandes foram as transformações,
que desde os tempos de Leão XIII sofreram tanto a economia, como o socialismo.
1. - EVOLUÇÃO DA ECONOMIA
E primeiramente todos vêem, quão
mudada está hoje a situação económica. Sabeis, veneráveis Irmãos e amados
Filhos, que o Nosso Predecessor de feliz memória na sua encíclica se referia
principalmente àquele sistema, em que ordinariamente uns contribuem com o
capital, os outros com o trabalho para o comum exercício da economia, qual ele
próprio a definiu na frase lapidar : « Nada vale o capital sem o trabalho, nem
o trabalho sem o capital ». (53)
Foi esta espécie de economia, que
Leão XIII procurou com todas as veras regular segundo as normas da justiça;
donde se segue que de per si não é condenável. E realmente de sua natureza não
é viciosa : só então viola a recta ordem, quando o capital escraviza aos
operários ou à classe proletária com o fim e condição de que os negócios e todo
o andamento económico estejam nas suas mãos e revertam em sua vantagem,
desprezando a dignidade humana dos operários, a função social da economia e a
própria justiça social e o bem comum.
Verdade é que mesmo hoje não é
esta a única forma de economia, que reina por toda a parte; há outra forma, que
ainda abraça uma numerosa e importante fracção da humanidade, como é por
exemplo a classe agrícola, na qual a maior parte do género humano ganha
honradamente a sua vida. Também esta se vê a braços com estreitezas e
dificuldades, às quais alude Nosso Predecessor em muitos passos da sua
encíclica e Nós nesta Nossa já mais de uma vez Nos referimos.
Mas o regime capitalista da
economia, desde a publicação da « Rerum
novarum », com o propagar-se da indústria alastrou em todas as
direcções, de tal maneira que se infiltrou e invadiu completamente todos os
outros campos da produção, cujas condições sociais e económicas afecta
realmente e informa com suas vantagens, desvantagens e vícios.
Por consequência não é só o bem
dos habitantes das regiões industriais, mas o de todos os homens, que Nós
procuramos, ao dirigirmos a Nossa atenção principalmente para as mudanças, que
sofreu a economia capitalista desde os tempos de Leão XIII.
Despotismo económico
É coisa manifesta, como nos
nossos tempos não só se amontoam riquezas, mas acumula-se um poder imenso e um
verdadeiro despotismo económico nas mãos de poucos, que as mais das vezes não
são senhores, mas simples depositários e administradores de capitais alheios,
com que negoceiam a seu talante. Este despotismo torna-se intolerável naqueles
que, tendo nas suas mãos o dinheiro, são também senhores absolutos do crédito e
por isso dispõem do sangue de que vive toda a economia, e manipulam de tal
maneira a alma da mesma, que não pode respirar sem sua licença. Este acumular
de poderio e recursos, nota característica da economia actual, é consequência
lógica da concorrência desenfreada, à qual só podem sobreviver os mais fortes,
isto é, ordinariamente os mais violentos competidores e que menos sofrem de
escrúpulos de consciência. Por outra parte este mesmo acumular de poderio gera
três espécies de luta pelo predomínio : primeiro luta-se por alcançar o
predomínio económico; depois combate-se renhidamente por obter predomínio no
governo da nação, a fim de poder abusar do seu nome, forças e autoridade nas
lutas económicas; enfim lutam os Estados entre si, empregando cada um deles a
força e influência política para promover as vantagens económicas dos seus
cidadãos, ou ao contrário empregando as forças e predomínio económico para
resolver as questões políticas, que surgem entre as nações.
Funestas consequências
As últimas consequências deste
espírito individualista no campo económico são essas que vós, veneráveis Irmãos
e amados Filhos, vedes e lamentais : a livre concorrência matou-se a si
própria; à liberdade do mercado sucedeu o predomínio económico; à avidez do
lucro seguiu-se a desenfreada ambição de predomínio; toda a economia se tornou
horrendamente dura, cruel, atroz. Acrescem os danos gravíssimos originados da
malfadada confusão dos empregos e atribuições da pública autoridade e da
economia, quais são : primeiro e um dos mais funestos, o aviltamento da
majestade do Estado, a qual do trono onde livre de partidarismos e atenta só ao
bem comum e à justiça, se sentava como rainha e árbitra suprema dos negócios
públicos, se vê feita escrava, entregue e acorrentada ao capricho de paixões
desenfreadas; depois, no campo das relações internacionais, dois rios brotados
da mesma fonte : de um lado o Nacionalismo ou Imperialismo económico, do outro
o Internacionalismo ou Imperialismo internacional bancário, não menos funesto e
execrável, cuja pátria é o interesse.
Remédios
Na parte doutrinal desta
encíclica indicámos já os remédios, com que se pode combater um mal tão
profundo. Agora basta recordar a substância do Nosso ensinamento. Visto como o
regime económico moderno se baseia principalmente no capital e no trabalho, é
preciso que as normas da recta razão ou da filosofia social cristã, relativas a
estes dois elementos e à sua colaboração, sejam melhor conhecidas e postas em
prática. Para, evitar o escolho quer do individualismo quer do socialismo,
ter-se-á em conta o duplo carácter individual e social tanto do capital ou
propriedade, como do trabalho. As relações mútuas de um com o outro devem ser
reguladas segundo as leis de uma rigorosa justiça comutativa, apoiada na
caridade cristã. A livre concorrência contida dentro de justos e razoáveis
limites e mais ainda o poderio económico devem estar efectivamente sujeitos à
autoridade pública, em tudo o que é da sua alçada. Enfim as públicas
instituições adaptarão a sociedade inteira às exigências do bem comum, isto é,
às regras da justiça; donde necessariamente resultará, que esta função tão
importante da vida social, qual é a actividade económica, se encontrará por sua
vez reconduzida a uma ordem sã e bem equilibrada.
2. - EVOLUÇÃO DO SOCIALISMO
Não menos profunda que a da
economia, foi desde o tempo de Leão XIII a evolução do socialismo, contra o
qual principalmente terçou armas o Nosso Predecessor. Então podia ele dizer-se
único, defendia uma doutrina bem definida e reduzida a sistema; depois
dividiu-se em duas facções principais, de tendências pela maior parte
contrárias, e irreconciliáveis entre si, conservando porém ambas o princípio
fundamental do socialismo primitivo, contrário à fé cristã.
O partido da violência ou comunismo
Uma das facções seguiu uma
evolução paralela à da economia capitalista, que antes descrevemos, e
precipitou no comunismo, que ensina duas coisas e as procura realizar, não
oculta ou solapadamente, mas à luz do dia, francamente e por todos os meios
ainda os mais violentos : guerra de classes sem tréguas nem quartel e completa
destruição da propriedade particular. Na prossecução destes objectivos a tudo
se atreve, nada respeita; uma vez no poder, é incrível e espantoso quão bárbaro
e desumano se monstra. Aí estão a atestá-lo as mortandades e ruínas de que
alastrou vastíssimas regiões da Europa oriental e da Ásia; e então o ódio
declarado contra a santa Igreja e contra o mesmo Deus demasiado o provam essas
monstruosidades sacrílegas bem conhecidas de todo o mundo. Por isso, se bem
julgamos supérfluo chamar a atenção dos filhos obedientes da Igreja para a
impiedade e iniquidade do comunismo, contudo não é sem uma dor profunda, que
vemos a apatia dos que parecem desprezar perigos tão iminentes, e com desleixo
pasmoso deixam propagar por toda a parte doutrinas, que porão a sociedade a
ferro e fogo. Sobretudo digna de censura é a inércia daqueles, que não tratam
de suprimir ou mudar um estado de coisas, que, exasperando os ânimos, abre
caminho à subversão e ruína completa da sociedade.
O socialismo propriamente dito,
ou mitigado
Mais moderada é a outra
facção, que conservou o nome de socialismo : porque não só professa abster-se
da violência, mas abranda e limita de algum modo, embora não as suprima de todo,
a luta de classes e a extinção da propriedade particular. Dir-se-ia que o
socialismo, aterrado com as consequências que o comunismo deduziu de seus
próprios princípios, tende para as verdades que a tradição cristã sempre
solenemente ensinou, e delas em certa maneira se aproxima; por quanto é
inegável que as suas revindicações concordam às vezes muitíssimo com as
reclamações dos católicos que trabalham na reforma social.
Com efeito a luta de classes,
quando livre de inimizades e ódio mútuo, transforma-se pouco a pouco numa
concorrência honesta, fundada no amor da justiça, que se bem não é aquela
bem-aventurada paz social, por que todos suspiramos, pode e deve ser o
princípio da mútua colaboração. Do mesmo modo a guerra à propriedade
particular, afrouxando pouco a pouco, chega a limitar-se a ponto de já não
agredir a posse do necessário à produção dos bens, mas aquele despotismo
social, que a propriedade contra todo o direito se arrogou. E de facto um tal
poder não pertence aos simples proprietários mas à autoridade pública. Por este
caminho podem os princípios deste socialismo mitigado vir pouco a pouco a
coincidir com os votos e reclamações dos que procuram reformar a sociedade
segundo os princípios cristãos. Estes com razão pretendem que certos géneros de
bens sejam reservados ao Estado, quando o poderio que trazem consigo é tal,
que, sem perigo do mesmo Estado, não pode deixar-se em mãos dos particulares.
Tão justos desejos e
revindicações em nada se opõem à verdade cristã, e muito menos são exclusivos
do socialismo. Por isso quem só por eles luta, não tem razão para declarar-se
socialista.
Mas não se vá julgar que os
partidos socialistas, não filiados ainda no comunismo, professam já todos
teórica e praticamente esta moderação. Em geral não renegam a luta de classes
nem a abolição da propriedade, apenas a mitigam. Ora se os falsos princípios
assim se mitigam e obliteram, pergunta-se, ou melhor perguntam alguns sem
razão, se não será bem que também os princípios católicos se mitiguem e
moderem, para sair ao encontro do socialismo e congraçar-se com ele a meio
caminho? Não falta quem se deixe levar da esperança de atrair por este modo os
socialistas. Esperança vã! Quem quer ser apóstolo entre os socialistas, é
preciso que professe franca e lealmente toda a verdade cristã, e que de nenhum
modo feche os olhos ao erro. Esforcem-se antes, se querem ser verdadeiros
arautos do Evangelho, por mostrar aos socialistas, que as suas reclamações, na
parte que tem de justas, se defendem muito mais vigorosamente com os princípios
da fé e se promovem muito mais eficazmente com as forças da caridade.
Contrasta com a doutrina católica
E se o socialismo estiver
realmente tão moderado no tocante à luta de classes e à propriedade particular,
que já não mereça nisto a mínima censura? Terá renunciado por isso à sua
natureza essencialmente anticristã? Eis uma dúvida, que a muitos traz
suspensos. Muitíssimos católicos convencidos de que os princípios cristãos não
podem jamais abandonar-se nem obliterar-se, volvem os olhos para esta Santa Sé
e suplicam instantemente, que definamos se este socialismo repudiou de tal
maneira as suas falsas doutrinas, que já se possa abraçar e quase baptizar, sem
prejuízo de nenhum princípio cristão. Para lhes respondermos, como pede a Nossa
paterna solicitude, declaramos : O socialismo quer se considere como doutrina,
quer como facto histórico, ou como « acção », se é verdadeiro socialismo, mesmo
depois de se aproximar da verdade e da justiça nos pontos sobreditos, não pode
conciliar-se com a doutrina católica; pois concebe a sociedade de modo
completamente avesso à verdade cristã.
Com efeito : segundo a doutrina
cristã o homem sociável por natureza é colocado nesta terra, para que, vivendo
em sociedade e sob a autoridade ordenada por Deus, 54 cultive e desenvolva
plenamente todas as suas faculdades, para louvor e glória do Criador, e pelo
fiel cumprimento dos deveres da sua profissão ou vocação, qualquer que ela
seja, grangeie a felicidade temporal e eterna. Ora o socialismo, ignorando por
completo ou desprezando este fim sublime dos indivíduos e da sociedade, opina
que o consórcio humano foi instituído só pela vantagem material que oferece. E
na verdade do facto que o trabalho convenientemente organizado é muito mais
produtivo que os esforços isolados, os socialistas concluem, que a actividade
económica deve necessariamente revestir uma forma social. Desta necessidade
segue-se, segundo eles, que os homens por amor da produção são obrigados a
entregar-se e sujeitar-se completamente à sociedade. Mais : estimam tanto os
bens materiais, que servem à comodidade da vida, que afirmam deverem pospor-se
e mesmo sacrificar-se quaisquer outros bens superiores e em particular a
liberdade às exigências de uma produção activíssima. Esta perda da dignidade
humana, inevitável no sistema da produção « socializada », julgam-na bem
compensada com a abundância dos bens que, produzidos socialmente, serão
distribuídos pelos indivíduos, e estes poderão livremente aplicar a uma vida
mais cómoda e faustosa. Em consequência a sociedade sonhada pelo socialismo não
pode existir nem conceber-se sem violências manifestas; por outra parte goza de
uma liberdade não menos falsa, pois carece de verdadeira autoridade social;
esta não pode fundar-se nos cómodos materiais, mas provém somente de Deus
Criador e fim último de todas as coisas. (55)
Católicos e socialistas termos
contraditórios
E se este erro, como todos os
mais, encerra algo de verdade, o que os Sumos Pontífices nunca negaram,
funda-se contudo numa própria concepção da sociedade humana, diametralmente
oposta à verdadeira doutrina católica. Socialismo religioso, socialismo
católico são termos contraditórios : ninguém pode ser ao mesmo tempo bom
católico e verdadeiro socialista.
Socialismo educador
Estas doutrinas que Nós de novo
com a Nossa suprema autoridade solenemente declaramos e confirmamos, devem
aplicar-se também a um novo sistema de socialismo prático, ainda mal conhecido,
mas que se vai propagando nos meios socialistas. Propõe-se ele a formação das
inteligências e dos costumes; e ainda que se faz particular amigo da infância e
procura aliciá-la, abraça todas as idades e condições, para formar o homem «
socialista » que há de constituir mais tarde a sociedade humana plasmada pelo
ideal do socialismo.
Na Nossa encíclica « Divini
illius Magistri » ensinámos desenvolvidamente os princípios, em que se
funda, os fins, a que se dirige a pedagogia cristã. (56)
Quão contrários lhes sejam a teoria e a prática do socialismo educador, é tão
claro e evidente, que é inútil insistir. Parecem porém ignorar ou não ter na
devida conta os gravíssimos e funestos perigos deste socialismo, os que não
tratam de lhe resistir forte e energicamente, como o pede a gravidade das
circunstâncias. É dever do Nosso múnus pastoral chamar-lhes a atenção para a
gravidade e eminência do perigo : lembrem-se todos, que deste socialismo
educador foi pai o liberalismo, será herdeiro legítimo o bolchevismo.
Católicos desertores nos arraiais
socialistas
Pôsto isto, compreendeis
facilmente, veneráveis Irmãos, com quanta dor vemos em algumas regiões não
poucos dos Nossos filhos, de cuja fé e boa vontade não queremos duvidar,
desertar dos arraiais da Igreja e passar às fileiras do socialismo; uns
ostentando abertamente o nome e professando as doutrinas socialistas, outros
indiferentes ou talvez forçados entrando em associações, que teórica ou
praticamente professam o socialismo.
Ora Nós com paterna solicitude
ansiosamente vamos considerando e indagando como foi possível, que chegassem a
tal aberração; e parece-Nos ouvir a resposta, com que muitos se escusam : a
Igreja e todos os que se lhe proclamam obedientes, favorecem os ricos,
desprezam os operários, nem têm deles o mínimo cuidado; por isso é que se viram
na necessidade de se inscrever no socialismo para salvaguardar os próprios
interesses.
É muito para lamentar, veneráveis
Irmãos, que houvesse um tempo e haja ainda quem, dizendo-se católico, apenas se
lembra da sublime lei da justiça, e caridade, que nos obriga não só a dar a
cada um o que lhe pertence, mas também a socorrer os pobres, nossos irmãos,
como ao próprio Jesus Cristo; (57)
quem não teme oprimir os operários por cobiça de sórdido lucro e, o que é mais
grave, quem abusa da mesma religião para paliar as suas iníquas extorsões e
defender-se contra as justíssimas reclamações dos operários. Por Nossa parte
não deixaremos nunca de censurar severamente um tal proceder; são eles os
culpados de a Igreja se ver injustamente (mas com certa aparência de verdade)
acusada de patrocinar a causa dos ricos, e de não se compadecer das
necessidades e angústias dos pobres, defraudados da sua parte de bem-estar
nesta vida. Aparências infundadas e acusações caluniosas, como demonstra toda a
história da Igreja. Bastava a encíclica, cujo quadragésimo aniversário
celebramos, para provar exuberante mente, que, só com a maior das injustiças,
se podem assacar à Igreja tais calúnias e contumélias.
Oxalá voltem à casa paterna
Porém nem a injúria Nos ofende,
nem a magna desalenta o Nosso coração paterno a ponto de repelirmos para longe
de Nós estes filhos tristemente enganados e saídos do caminho da verdade e da salvação;
ao contrário com toda a possível solicitude os convidamos, a que voltem ao seio
da Santa Madre Igreja. Oxalá que dêem ouvidos à Nossa voz! Oxalá que voltem à
casa paterna donde saíram e aí permaneçam na seu posto, nas fileiras daqueles
que, fieis às directivas promulgadas por Leão XIII e por Nós hoje solenemente
renovadas, procuram reformar a sociedade segundo o espírito da Igreja, fazendo
reflorescer a justiça e a caridade sociais. E persuadam-se que em parte nenhuma
podem encontrar maior felicidade, até mesmo temporal, que junto d'Aquêle que
por nós se fez pobre sendo rico, para nos enriquecer com a sua pobreza, (58)
que viveu pobre e em trabalhos desde a sua juventude, que chama a si todos os
que trabalham e se vêem oprimidos, para os aliviar na caridade do seu Coração, (59)
que finalmente sem aceitação de pessoas exigirá mais d'aqueles a quem foi dado
mais (60)
e retribuirá a cada um segundo as suas obras. (61)
3. - REFORMA DOS COSTUMES
Mas se examinarmos as coisas mais
a fundo, veremos à evidência, que esta restauração social tão ardentemente
desejada, não se pode obter sem prévia e completa renovação do espírito
cristão, do qual miseravelmente desertaram tantos economistas; porque sem ela
seriam inúteis todos os esforços e fabricariam não sobre a rocha, mas sobre a
areia movediça. (62)
E realmente, veneráveis Irmãos e
amados Filhos, acabamos de estudar a economia actual, e achámo-la profundamente
viciada. Citámos novamente a juízo o comunismo e o socialismo, e vimos quanto
as suas formas ainda as mais mitigadas, se desviam dos ditames do Evangelho.
« Portanto, para usar das
palavras do Nosso Predecessor, se pode curar-se a sociedade humana, só se
curará voltando à vida e instituições cristãs ». (63)
Só estas podem dar remédio eficaz à demasiada solicitude das coisas caducas
origem de todos os vícios ; só estas podem fazer, que os homens, fascinados
pelos bens deste mundo transitório, desviem deles os olhos e os levantem ao
céu. Quem dirá, que este remédio não é hoje, mais que nunca, necessário à
família humana?
A ruína das almas
Todos se preocupam quase
unicamente com as revoluções, calamidades e ruínas temporais. Mas, se vemos as
coisas à luz da fé, que é tudo isto em comparação da ruína das almas? Bem pode
dizer-se, que tais são hoje as condições da vida social e económica, que se
torna muito difícil a uma grande multidão de homens ganharem o único
necessário, a salvação eterna.
Nós, a quem o Príncipe dos
Pastores constituiu Pastor e Guarda destas inumeráveis ovelhas, remidas com o
seu sangue, não podemos contemplar a olhos enxutos o gravíssimo perigo, que
elas correm. Senão que, lembrados do Nosso dever pastoral, com solicitude
paterna, meditamos continuamente no modo de as ajudar, chamando em auxílio o
zelo indefesso dos que a isso estão obrigados por justiça ou caridade. Pois que
aproveita aos homens poderem mais facilmente lucrar o mundo inteiro com uma
distribuição e uso mais racional das riquezas, se com isso mesmo vem a perder a
alma? (64)
Que aproveita ensinar-lhes os princípios da boa economia, se com avareza
sórdida e desenfreada se deixam arrebatar de tal maneira do amor dos próprios
bens, que « ouvindo os mandamentos do Senhor, fazem tudo o contrário »? (65)
Causa desta ruína
A raiz e fonte desta defecção da
lei cristã na vida social e económica, e da consequente apostasia da fé
católica para muitos operários é a desordem das paixões, triste efeito do
pecado original; foi ele que destruiu a admirável harmonia das faculdades
humanas e dispõe o homem a deixar-se facilmente arrastar das más paixões e a
preferir os bens caducos da terra aos eternos do céu. D'aqui aquela sede
inextinguível de riquezas e bens temporais, que, se em todos os tempos arrastou
os homens a quebrar a lei de Deus e conculcar os direitos do próximo, nas
actuais condições económicas arma à fragilidade humana laços ainda mais
numerosos. Com efeito a incerteza da economia e mais ainda a sua complicação
exigem dos que a ela se aplicam, uma contenção de forças suma e contínua; em
consequência algumas consciências calejaram de tal maneira, que julgam lícitos
todos os meios de aumentar os lucros e defender contra os vaivens da fortuna a
riqueza adquirida à custa de tantos esforços e cancerais. A facilidade dos
lucros, que oferece a anarquia do mercado, leva muitos a darem-se ao comércio
desejosos unicamente de enriquecer sem grande trabalho; os quais, com
desenfreada especulação, levantam e diminuem os preços a capricho da própria
cobiça e com tal frequência, que desconcertam todos os cálculos dos produtores.
As instituições jurídicas destinadas a favorecer a colaboração dos capitais,
por isso que dividem e diminuem os riscos, dão lugar muitas vezes aos mais
repreensíveis excessos; com efeito vemos a responsabilidade tão atenuada, que
já a poucos impressiona; sob a tutela de um nome colectivo praticam-se as
maiores injustiças e fraudes; os gerentes destas sociedades económicas,
esquecidos dos seus deveres, atraiçoam os direitos daqueles, cujas economias
deviam administrar. Nem se devem finalmente deixar em silêncio os traficantes
que, sem olharem à honestidade das suas artes, não temem estimular os caprichos
da clientela para deles abusarem em própria vantagem.
Somente uma rígida disciplina dos
costumes, energicamente apoiada pela autoridade pública, poderia ter afastado
ou mesmo prevenido tão graves inconvenientes; mas infelizmente essa faltou.
Quando começou a aparecer o novo regime económico, tinha o nacionalismo
penetrado e lançado raízes em muitas inteligências; por isso e ciência
económica, que então se formou, prescindindo da lei moral, soltava as rédeas às
paixões humanas.
E assim sucedeu, que mais do que
antes, muitíssimos não pensavam senão em aumentar por todos os modos as suas
riquezas; e procurando-se a si mais que tudo e acima de todos, de nada tinham
escrúpulo, nem sequer dos maiores delitos contra o próximo. Os primeiros a
entrar por este caminho largo que leva à perdição, (66)
grangearam por sua vez e facilmente muitos imitadores da sua maldade, já pelo
exemplo de um êxito aparente, já pela insolente pompa das suas riquezas, ora
metendo a ridículo a consciência dos outros, como se estivesse agitada de vãos
escrúpulos, ora finalmente conculcando os competidores mais conscienciosos.
Desviados do bom caminho os
dirigentes da economia, devia logicamente precipitar-se no mesmo abismo a
multidão operária; e isto tanto mais, que muitos directores de oficinas usavam
dos operários como de meros instrumentos, em nada solícitos da sua alma, não
pensando sequer no sobrenatural. Sentimo-Nos horrorizados ao pensar nos
gravíssimos perigos a que estão expostos nas fábricas modernas os costumes dos
operários (sobre tudo jovens) e o pudor das mulheres e donzelas; ao
lembrarmo-Nos de que muitas vezes o sistema económico hodierno e sobre tudo as
más condições da habitação criam obstáculos à união e intimidade da vida de
família; ao recordarmos os muitos e grandes impedimentos opostos à devida
santificação dos domingos e festas de guarda; ao considerarmos enfim como
diminuiu aquele sentimento verdadeiramente cristão, com que até os rudes e
ignorantes aspiravam aos bens superiores, para dar lugar à solicitude única de
procurar tão somente e por todos os meios o pão quotidiano. Deste modo o
trabalho corporal, ordenado pela divina Providência, depois da. culpa de
origem, para remédio do corpo e da alma, converte-se frequentemente em
instrumento de perversão : da oficina só a matéria sai enobrecida, os homens ao
contrário corrompem-se e aviltam-se.
REMÉDIOS
A) Cristianização da vida
económica
A esta tão deplorável crise das
almas, que, enquanto dure, tornará inúteis todos os esforços de regeneração
social, não pode dar-se outro remédio, mais que reconduzir os homens à
profissão franca e sincera da doutrina evangélica, aos ensinamentos d'Aquele,
que tem ele só palavras de vida eterna, (67)
e palavras tais, que hão de perdurar eternamente, ainda depois de passarem os
céus e a terra. (68)
É certo que todos os verdadeiramente entendidos em sociologia, anseiam por uma
reforma moldada pelas normas da razão, que restitua a vida económica à sã e
recta ordem. Mas esta ordem, que também Nós ardentemente desejamos, e
procuramos com o maior empenho, será de todo falha e imperfeita, se não
tenderem de concerto todas as energias humanas a Imitar a admirável unidade do
divino conselho e a consegui-la, quanto ao homem é dado : chamamos perfeita aquela
ordem apregoada pela Igreja com grande força e tenacidade, pedida mesmo pela
razão humana, isto é : que tudo se encaminhe para Deus fim primário e supremo
de toda a actividade criada, e que todos os bens criados por Deus se considerem
como instrumentos dos quais o homem deve usar tanto, quanto lhe sirvam a
conseguir o último fim. Nem deve julgar-se que esta filosofia rebaixa as artes
lucrativas ou as considera menos conformes à dignidade humana; pelo contrário
ensina a reconhecer e venerar nelas a vontade manifesta do divino Criador, que
colocou o homem sobre a terra para a cultivar e usar dela segundo as suas
múltiplas precisões. Nem é vedado aos que se empregam na produção, aumentar
justa e devidamente a sua fortuna; antes a Igreja ensina ser justo que quem
serve a sociedade e lhe aumenta os bens, se enriqueça também desses mesmos bens
conforme a sua condição, contanto que isto se faça com o respeito devido à lei
de Deus e salvos os direitos do próximo, e os bens se empreguem segundo os
princípios da fé e da recta razão. Se esta doutrina fosse por todos, em toda a
parte e sempre observada, não somente a produção e aquisição dos bens, mas
também o uso das riquezas, agora tantas vezes desordenado, voltaria depressa
aos limites da equidade e justa distribuição; à única e tão sórdida preocupação
dos próprios interesses, que é a desonra e o grande pecado do nosso tempo,
opõr-se-ia na verdade e de facto a suavíssima e igualmente poderosa lei da
moderação cristã, que manda ao homem buscar primeiro o reino de Deus e a sua
justiça, seguro de que também na medida do necessário a liberalidade divina,
fiel às suas promessas, lhe dará por acréscimo os bens temporais. (69)
B) A lei da caridade
Mas isto só não basta : à lei da
justiça deve juntar-se a da caridade, « que é o vínculo da perfeição ». (70)
Quanto se enganam por tanto os reformadores incautos, que atendendo somente a
guardar a justiça comutativa, rejeitam com orgulho o concurso da caridade! De
certo não pode a caridade substituir a justiça, quando o devido se nega
iniquinamente. Contudo ainda que o homem alcance enfim quanto lhe é devido,
restará sempre um campo imenso aberto à caridade : a justiça, bem que praticada
com todo o rigor, se pode extirpar as raízes das lutas sociais, não poderá
nunca sozinha congraçar os ânimos e unir os corações. Ora todas as instituições
criadas para consolidar a paz e promover a colaboração social, por mais
perfeitas que pareçam, tem o fundamento da sua estabilidade principalmente no
vínculo que une as almas; se este falta, tornam-se ineficazes os melhores
estatutos, como tantas vezes a experiência no-lo ensinou. Por isso só haverá
uma verdadeira cooperação de todos para o bem comum, quando as diversas partes
da sociedade sentirem intimamente, que são membros de uma só e grande família,
filhos do mesmos Pai celeste, antes um só corpo em Cristo e « membros uns dos
outros », (71)
de modo que « se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele ». (72)
Então os ricos e senhores converterão em amor solícito e operoso o antigo
desprezo pelos irmãos mais pobres; acolherão os seus justos pedidos com bom rosto
e coração aberto, perdoar-lhes-ão até sinceramente as culpas e os erros. Por
sua vez os operários, reprimindo qualquer sentimento de ódio e inveja, de que
abusam com tanta astúcia os fautores da luta de classes, não desdenharão o
posto que a divina Providência lhes assinou na sociedade humana, antes o terão
em grande apreço, bem persuadidos de que no seu emprego e ofício trabalham útil
e honrosamente para o bem comum, e seguem mais de perto Aquele que, sendo Deus,
quis na terra fazer-se operário e ser considerado como filho de operário.
É desta nova difusão do espírito
evangélico no mundo, do espírito de moderação cristã e de caridade universal,
que há de brotar, como esperamos, aquela tão desejada e completa restauração da
sociedade humana em Cristo, e aquela « Paz de Cristo no reino de Cristo », a
que desde o início do nosso Pontificado firmemente propusemos consagrai todo o
Nosso cuidado e solicitude pastoral. (73)
A esta obra primordial e hoje absolutamente necessária, também vós, veneráveis
Irmãos, posto. pelo Espírito Santo a governar comNosco a Igreja de Deus (74)
consagrais incansavelmente o melhor do vosso zelo em todas as partes do mundo,
inclusivamente nas terras de missões entre infiéis. A vós o merecido louvor e
comvosco a todos esses valorosos colaboradores na mesma grande empresa,
clérigos ou leigos, aos Nossos amados Filhos da Acção Católica, que Nós com
tanto prazer vemos dedicarem-se generosamente comNosco à solução dos problemas
sociais, na persuasão de que a Igreja por força da sua divina instituição tem o
direito e o dever de se ocupar d'eles. A todos estes instantemente exortamos no
Senhor, que não se poupem a nenhum trabalho, não se deixem vencer das
dificuldades, mas cada vez cobrem maior ânimo e sejam fortes. (75)
É árdua efectivamente a empresa que lhes propomos : conhecemos muito bem, que
de ambas as partes surgem inúmeros obstáculos, quer das classes superiores,
quer das inferiores da sociedade. Não desanimem porém; a vida do cristão é uma
contínua milícia; mas assinalar-se em empresas difíceis é próprio dos que, como
bons soldados, (76)
mais de perto seguem a Cristo.
Portanto unicamente confiados no
auxílio omnipotente d'Aquele que « a todos os homens quer salvar », (77)
esforcemo-nos em ajudar estas pobres almas, afastadas de Deus, e arrancando-as
aos cuidados temporais, em que vivem enredadas, ensinemos-lhes a aspirar
confiadamente às coisas eternas. Nem isto é sempre tão difícil de obter, como à
primeira vista parece : se nos recônditos do coração, ainda o mais perdido,
como brasas debaixo da cinza, se ocultam maravilhosas energias de espírito,
testemunho seguro d'aquela « alma naturalmente cristã », quanto mais as haverá
nos corações d'aqueles, e são a maior parte, que mais por ignorância ou por
influências externas, do que por malícia, se deixaram arrastar para o erro?
Além disto apresentam-nos já
sinais lisonjeiros de restauração social as mesmas fileiras dos operários, nas
quais vemos com indizível gozo da alma poderosos núcleos de jovens, que escutam
com docilidade as inspirações da graça divina e se empenham com zelo incrível
em ganhar a Cristo a alma de seus irmãos. E não são menos dignos de elogio os
dirigentes das organizações operárias que, esquecidos dos seus interesses e
solícitos sobre tudo do bem dos companheiros, procuram harmonizar prudentemente
as suas justas reclamações com a prosperidade de toda a indústria, nem por
nenhumas dificuldades ou suspeitas se deixam demover de tão nobre procedimento.
Podem ver-se até muitos jovens destinados a ocupar brevemente ou pelo engenho
ou pelas riquezas um posto de realce nas primeiras camadas da sociedade, que se
consagram com o mais intenso cuidado a estas questões, dando risonha esperança
de virem a dedicar-se todos à restauração social.
Caminho a seguir
As circunstâncias, veneráveis
Irmãos, mostram bem qual a via a trilhar. Como noutras épocas da Igreja, temos
de defrontar-nos com um mundo quase recaído no paganismo. Para reconduzir a
Cristo, a quem renegaram, essas classes inteiras de homens, devem escolher-se e
formar-se de entre elas soldados auxiliares da Igreja, que conheçam bem os
mesmos homens, os seus pensamentos e aspirações, e possam pela caridade fraterna
penetrar-lhes suavemente no coração. Os primeiros e imediatos apóstolos dos
operários devem ser operários; os apóstolos dos artistas e comerciantes devem
sair dentre eles.
Procurar cuidadosamente estes
apóstolos dos operários e patrões, escolhê-los com prudência, formá-los e
educá-los como convém, é principalíssimo dever vosso e do vosso clero,
veneráveis Irmãos. É de certo um pesado múnus imposto aos sacerdotes, para cujo
desempenho devem preparar-se devidamente com aturado estudo das questões
sociais os levitas que formam a esperança da Igreja; mas é sobre tudo
necessário que os escolhidos em particular para este ofício sejam dotados de um
tão apurado sentimento de justiça, que resistam varonilmente a qualquer
reclamação iníqua ou acção injusta; se avantagem na prudência e numa discrição
não inclinada a extremos; que estejam mais que tudo penetrados da caridade de
Cristo, que só pode render forte e suavemente os corações e as vontades dos
homens às leis da justiça e da equidade. Não há duvida que este caminho,
abonado já por felizes resultados, é o que se deve seguir denodadamente.
A esses Nossos amados filhos,
escolhidos para tão grande empresa, exoramos vivamente no Senhor, que se dêem
todos ao cultivo dos homens a si confiados, e que no desempenho desse ofício
eminentemente sacerdotal e apostólico usem como convêm da força da educação
cristã, ensinando os jovens, fundando associações católicas, criando círculos,
onde se cultive o estudo segundo os princípios da fé. Tenham sobretudo em
grande apreço e saibam usar para bem dos seus dirigidos aquele preciosíssimo
instrumento de restauração individual e social, que são os Exercícios
espirituais por Nós encarecidos na Nossa encíclica « Mens Nostra », na
qual lembrámos espressamente e recomendámos os exercícios como utilíssimos para
todas as classes do laicado e em particular para os operários : com efeito
nesta escola do espírito não só se cultivam ótimos cristãos, mas formam-se e
inflamam-se no fogo do Coração de Jesus verdadeiros apóstolos para todos os estados
da vida. Desta escola, como os Apóstolos do Cenáculo de Jerusalém, sairão
fortes na fé, constantes nas perseguições, ardentes de zelo, unicamente
solícitos de propagar por toda a parte o reino de Cristo.
E certamente agora, mais que
nunca, são precisos estes valorosos soldados de Cristo, que trabalhem com todas
as forças por preservar a família humana da pavorosa catástrofe, em que viria a
precipitar-se, se o desprezo das doutrinas do Evangelho deixasse triunfar uma
ordem de coisas, que conculca as leis da natureza, não menos que as de Deus. A
Igreja de Cristo, alicerçada na rocha inabalável, nada tem que temer por si,
pois sabe muito bem, que as portas do inferno não prevalecerão contra ela; (78)
e uma experiência de vinte séculos prova-lhe, que das tempestades mais
violentas sai cada vez mais forte e coroada de novos triunfos. Mas o seu
coração de Mãe estremece de horror ao pensar nos males sem número, em que estas
tempestades afogariam milhares de homens e mais ainda nos gravíssimos danos
espirituais, que daí resultariam em ruína de tantas almas resgatadas com o
sangue de Cristo.
Devem pois envidar-se todos os
esforços para desviar da sociedade humana males tão grandes : a isto devem
endereçar-se os nossos trabalhos, a nossa solicitude, as nossas orações a Deus,
assíduas e fervorosas. Com o socorro da graça divina temos em nossas mãos a
sorte da família humana.
Não consintamos, veneráveis
Irmãos e amados Filhos, que os filhos deste século se mostrem na sua geração
mais prudentes do que nós, que somos, por mercê divina, filhos da luz. (79)
Vemos com quanta sagacidade eles escolhem adeptos militantes e os formam, para
que espalhem os seus erros cada vez mais largamente, em todas as classes e
sobre todos os pontos do globo. E quando se trata de combater mais
violentamente a Igreja de Cristo, vemos que, dando tréguas às discórdias
intestinas, cerram fileiras num só exército, e unidos trabalham com todas as
forças por levar a efeito o comum intento.
União das forças católicas
Ninguém ignora quantas e quão
grandes obras empreenda por toda a parte o zelo infatigável dos católicos,
tanto no campo social e económico, como no do ensino e da religião. Não raro
porém esta actividade admirável e laboriosa se torna menos eficaz devido à
demasiada dispersão de forças. Unam-se pois todos os homens de boa vontade, que
sob a direcção dos Pastores da Igreja querem combater este bom e pacífico
combate de Cristo; e todos, seguindo as directivas e ensinamentos da Igreja, se
esforcem por contribuir na medida do seu engenho, forças e condição para aquele
renovamento cristão da sociedade, que Leão XIII inaugurou com a imortal
encíclica « Rerum
novarum » : não se procurando a si mesmos nem os seus próprios
interesses, mas os de Jesus Cristo; (80)
não teimando em fazer triunfar as suas ideias, por boas que sejam, mas
dispostos a sacrificá-las ao bem comum; para que em tudo e sobre tudo reine e
impere Cristo, a quem seja honra, glória e poder por todos os séculos. (81)
Para que isto se realize, a todos
vós, veneráveis Irmãos e amados Filhos, quantos sois membros da grande família
católica a Nós confiada, mas com particular afecto aos operários e aos outros
trabalhadores de artes mecânicas, a Nós mais especialmente recomendados pela
divina Providência, e também aos patrões e empresários cristãos damos de
coração a Bênção Apostólica.
Dado em Roma, junto de S. Pedro,
aos XV de maio de MCMXXXI, ano X do Nosso Pontificado.
PIO PP.
XI.
Notas
(3)
Encícl. Immortale
Dei 1 de Novembro de 1885.
(4)
Encícl. Sapientiae
christianae 10 de Janeiro de 1890.
(5)
Encícl. Quod
apostolici muneris 28 de Dezembro de 1878.
(7)
Encícl. Rerum
novarum, 15 de Maio de 1891, n. 1.
(8)
Cfr. Encícl. Rerum
novarum, n. 13.
(9)
Encícl. Rerum
novarum, n. 2.
(10)
Encícl. Rerum
novarum, D. 13.
(12)
Encícl. Rerum
novarum, n. 1.
(14)
Encícl. Rerum
novarum, n. 13.
(15)
Baste mencionar: Leão XIII, Letras Apostólicas Praeclara 20 de Junho de
1894. Leão XIII Graves de communi 18 de Janeiro de 1901. Pio X Motu
proprio sobre a Acção-popular cristã 8 de Dezembro de 1903. Bento XV,
Enciclica Ad
Beatissimi 1 de Novembro de 1914. Pio XI, Enciclica Ubi
arcano 23 de Dezembro de 1922. Pio XI, Enciclica Rite
expiatis 30 de Abril de 1926.
(16)
Cfr. La Hierarchie Catholique et le Problème social depuis l'Encyclique «
Rerum novarum » 1891-1931, pp. XVI-335, publicado pela « Union
internationale d'études sociales fondée à Malines, en 1920, sons la présidence
du Card. Mercier ». (Paris, éditions Spes », 1931).
(18)
Encícl. Rerum
novarum, n. 25.
(19)
Encícl. Rerum
novarum, n. 29.
(20)
Encícl. Rerum
novarum, n. 36.
(21)
Encícl. Rerum
novarum, n. 42.
(22)
Encícl. Rerum
novarum, n. 43.
(23)
Encícl. Singulari
quadam de 24 de Setembro de 1912.
(26)
Cfr. Rerum
novarum, n. 13.
(30)
Encícl. Rerum
novarum, n. 19.
(31)
Cfr. Encícl. Rerum
novarum, n. 19.
(32)
Encícl. Rerum
novarum, n. 7.
(34)
Encícl. Rerum
novarum, n. 6.
(35)
Encícl. Rerum
novarum, n. 10.
(36)
Encícl. Rerum
novarum, n.
(38)
Encícl. Rerum
novarum, n. 27.
(39)
Encícl. Rerum
novarum, n. 15.
(40)
Encícl. Rerum
novarum, n. 7.
(43)
Encícl. Rerum
novarum, n. 35.
(44)
Encícl. Rerum
novarum, n. 34.
(45)
Encícl. Rerum
novarum, n. 17.
(47)
Cfr. S. Thomas, De regimine principum, 1, 15. Encícl. Rerum
novarum, n. 27.
(48)
Encícl. Rerum
novarum, n. 16.
(50)
Cfr. Encícl. Immortale
Dei, 1 de Novembro de 1885.
(53)
Encícl. Rerum
novarum, n. 15.
(56)
Encícl. Divini
illius Magistri, 31 de Dezembro de 1929.
(63)
Encícl. Rerum
novarum, n. 22.
(73)
Cfr. Encícl. Ubi
arcano, de 23 de Dezembro de 1922.
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