Retrato de um homem que acaba de
expirar
Pulvis es et in pulverem reverteris. És pó e em pó te hás de tornar (Gn 3,19)
PONTO I
Considera que és pó e que em pó te hás de converter.
Virá o dia em que será preciso morrer e apodrecer num fosso, onde ficarás
coberto de vermes. A todos, nobres e plebeus, príncipes ou vassalos, estará
reservada a mesma sorte. Logo que a alma, com o último suspiro, sair do corpo,
passará à eternidade, e o corpo se reduzirá a pó.
Imagina que estás em presença de uma pessoa
que acaba de expirar. Contempla aquele cadáver, estendido ainda em seu leito
mortuário: a cabeça inclinada sobre o peito; o cabelo em desalinho e banhado
ainda em suores da morte, os olhos encovados, as faces descarnadas, o rosto
acinzentado, os lábios e a língua cor de chumbo; hirto e pesado o corpo. Treme
e empalidece quem o vê. Quantas pessoas, à vista de um parente ou amigo morto,
mudaram de vida e abandonaram o mundo.
É ainda mais horrível o aspecto do cadáver
quando começa a corromper- se. Nem um dia se passou após o falecimento daquele
jovem, e já se percebe o mau cheiro. É preciso abrir as janelas e queimar
incenso; é mister que prontamente levem o defunto à igreja, ou ao cemitério, e
o entreguem à terra para que não infeccione toda a casa. Mesmo que aquele corpo
tenha pertencido a um nobre ou potentado, não servirá senão para que exale
ainda fetidez mais insuportável, — disse um autor.
Vês o estado a que chegou aquele soberbo, aquele
dissoluto! Ainda há pouco, via-se acolhido e cortejado pela sociedade; agora
tornou-se o horror e o espanto de quem o contempla. Os parentes apressam-se a
afastá-lo de casa e pagam aos coveiros para que o encerrem em um esquife e lhe
dêem sepultura. Há bem poucos instantes ainda se apregoava a fama, o talento, a
finura, a polidez e a graça desse homem; mas apenas está morto, nem sua
lembrança se conserva.
Ao ouvir a notícia de sua morte, limitam-se
uns a dizer que era homem honrado; outros, que deixou à família grande riqueza.
Contristam- se alguns, porque a vida do falecido lhes era proveitosa;
alegram-se outros, porque vão ficar de posse de tudo quanto tinha. Por fim,
dentro em breve, já ninguém falará nele, e até seus parentes mais próximos não
querem ouvir falar dele para não se lhes agravar a dor que sentem. Nas visitas
de condolências, trata-se de outro assunto; e, quando alguém se atreve a
mencionar o falecido, não falta um parente que advirta: Por caridade, não
pronuncies mais o seu nome! Considera que assim como procedes por ocasião da
morte de teus parentes e amigos, assim os outros agirão na tua. Os vivos entram
no cenário do mundo para desempenhar seu papel e ocupar os lugares dos mortos;
mas do apreço e da memória destes pouco ou nada cuidam.
A princípio, os parentes se afligem por
alguns dias, mas se consolam depressa com a parte da herança que lhes couber e,
talvez, parece que até a tua morte os regozija. Naquela mesma casa onde
exalas-te o último suspiro, e onde Jesus Cristo te julgou, passarão a
celebrar-se, como dantes, banquetes e bailes, festas e jogos. E tua alma, onde
estará então?
AFETOS E SÚPLICAS
Agradeço-vos, meu Jesus Redentor, o não me terdes
deixado morrer quando incorrera no vosso desagrado! Há quantos anos já, mereci
estar no inferno! Se eu tivesse morrido naquele dia, naquela noite, que teria
sido de mim por toda a eternidade? Senhor, dou-vos graças por esse benefício.
Aceito minha morte em satisfação de meus pecados e aceito-a tal qual me
quiserdes enviar; mas, já que haveis esperado até esta hora, esperai mais um
pouco ainda. Dai-me tempo de chorar as ofensas que vos fiz, antes que chegue o
dia em que tereis de julgar-me.
Não quero resistir, por mais tempo, ao vosso
chamado. Talvez, estas palavras que acabo de ler, sejam para mim vosso último
convite! Confesso que não mereço misericórdia. Tantas vezes me tendes perdoado,
e eu, ingrato, tornei a vos ofender! Senhor, já que não sabeis desprezar nenhum
coração que se humilha e se arrepende (Sl 50,19), eis aqui um traidor, que
arrependido recorre a vós! Por piedade, não me repilais de vossa presença (Sl
50,13). Vós mesmo dissestes: “aquele que vem a mim, não o desprezarei” (Jo
6,37). É verdade que vos ofendi mais que os outros, porque mais que os outros
fui favorecido por vossa luz e vossa graça. Mas anima-me o sangue que por mim
derramastes, e me fez esperar o perdão se me arrepender sinceramente. Sim, Sumo
Bem de minha alma, arrependo-me de todo o coração de vos ter desprezado.
Perdoai-me e concedei-me a graça de vos amar
para o futuro. Basta de ofensas. Não quero, meu Jesus, empregar o resto de
minha vida em injuriar-vos; quero unicamente empregá-la em chorar sem cessar os
ultrajes que vos fiz, e em amar-vos de todo o coração. Ó Deus, digno de amor
infinito! Ó Maria, minha esperança, rogai a Jesus por mim!
PONTO II
Cristão, para compreenderes melhor o que és —
disse São João Crisóstomo — “aproxima-te de um sepulcro, contempla o pó, a cinza
e os vermes, e chora”. Observa como aquele cadáver, de amarelo que é, se vai
tornando negro. Não tarda a aparecer por todo o corpo uma espécie de penugem
branca e repugnante. Sai dela uma matéria pútrida, nasce uma multidão de
vermes, que se nutrem das carnes. Às vezes, se associam a estes os ratos para
devorar aquele corpo, saltando por cima dele, enquanto outros penetram na boca
e nas entranhas. Caem a pedaços as faces, os lábios e o cabelo; descarna-se o
peito, e em seguida os braços e as pernas. Quando as carnes estiverem todas
consumidas, os vermes passam a se devorar uns aos outros, e de todo aquele
corpo só resta afinal um esqueleto fétido que com o tempo se desfaz,
desarticulando-se os ossos e separando-se a cabeça do tronco.
“Reduzido como a miúda palha que o vento leva
para fora da eira no tempo do estio” (Dn 2,35). Isto é o homem: um pouco de pó
que o vento dispersa.
Onde está agora aquele cavalheiro a quem chamavam
alma e encanto da conversação? Entra em seu quarto; já não está ali. Visita o
seu leito; foi dado a outro. Procura suas roupas, suas armas; outros já se
apoderaram de tudo. Se quiseres vê-lo, acerca-te daquela cova onde jaz em
podridão e com a ossada descarnada. Ó meu Deus! A que estado ficou reduzido
esse corpo alimentado com tanto mimo, vestido com tanta gala, cercado de tantos
amigos? Ó santos, como haveis sido prudentes: pelo amor de Deus — fim único que
amastes neste mundo — soubestes mortificar a vossa carne. Agora, os vossos
ossos, como preciosas relíquias, são venerados e conservados em urnas de ouro.
E vossas belas almas gozam de Deus, esperando o dia final para se unir a vossos
corpos gloriosos, que serão companheiros e partícipes da 5 glória sem fim, como
o foram da cruz durante a vida. Este é o verdadeiro amor ao corpo mortal:
fazê-lo suportar trabalhos, a fim de que seja feliz eternamente, e negar-lhe
todo prazer que o possa lançar para sempre na desdita.
AFETOS E SÚPLICAS
Eis aqui, meu Deus, a que se reduzirá também
este meu corpo, por meio do qual tanto vos tenho ofendido: presa dos vermes e
da podridão! Mas não me aflijo, Senhor; antes me regozijo de que assim se tenha
que corromper e consumir-se esta carne que me fez perder a vós, meu Sumo Bem. O
que me contrista é ter-vos causado tanto desgosto, indo à procura de míseros
prazeres. Não quero, porém, desconfiar da vossa misericórdia. Vós esperastes
por mim para me perdoar (Is 30,18). E quereis perdoar-me se me arrependo. Sim,
arrependo-me, ó Bondade infinita, de todo o meu coração, de vos ter desprezado.
Direi com Santa Catarina de Gênova: “Meu Jesus, nunca mais pecarei, nunca mais
pecarei”. Não quero abusar por mais tempo da vossa paciência.
Não quero esperar, meu amor crucificado, para
vos abraçar quando me fordes apresentado pelo confessor na hora da morte. Desde
já, vos abraço; desde já, vos recomendo minha alma. Como esta minha alma tem
passado tantos anos sem amar-vos, dai-me luz e força para que vos ame no resto
de minha vida. Não esperarei, não, para amar-vos, até que se aproxime a hora
derradeira. Desde já, vos abraço e estreito ao coração, prometendo jamais vos
abandonar.
Ó Virgem Santíssima, uni-me a Jesus Cristo,
alcançando-me a graça de não o perder nunca!
PONTO III
Neste quadro da morte, caro irmão,
reconhece-te a ti mesmo, e considera o que virás a ser um dia: “Recorda-te que
és pó, e em pó te converterás”. Pensa que dentro de poucos anos, quiçá dentro
de alguns meses ou dias, não serás mais que vermes e podridão. Este pensamento
fez de Jó um grande santo: “À podridão eu disse: tu és meu pai; aos vermes:
sois minha mãe e minha irmã”.
Tudo se há de acabar, e se perderes tua alma
na morte, tudo estará perdido para ti. “Considera-te desde já como morto, —
disse São Lourenço Justiniano — pois sabes que necessariamente hás de morrer”.
Se já estivesses morto, que não desejarias ter feito por Deus? Portanto, agora
que vives, pensa que algum dia cairás morto. Disse São Boaventura que o piloto,
para governar o navio, se coloca na extremidade traseira do mesmo; assim o
homem, para levar a vida boa e santa, deve imaginar sempre o que será dele na
hora da morte. Por isso, exclama São Bernardo: “Considera os pecados de tua
mocidade e cora; considera os pecados da idade viril e chora; considera as desordens
da vida presente, e estremece”, e apressa-te em remediá-la prontamente.
São Camilo de Lélis, ao aproximar-se de
alguma sepultura, fazia estas reflexões: Se estes mortos voltassem ao mundo,
que não fariam pela vida eterna? E eu, que disponho de tempo, que faço eu por
minha alma? Este Santo pensava assim por humildade; mas tu, querido irmão, talvez
com razão receies ser considerado aquela figueira sem fruto, da qual disse o Senhor:
“Três anos já que venho a buscar frutas a esta figueira, e não os achei” (Lc
13,7).
Tu, que há mais de três anos estás neste
mundo, quais os frutos que tens produzido? Considera — disse São Bernardo — que
o Senhor não procura somente flores, mas quer frutos; isto é, não se contenta
com bons propósitos e desejos, mas exige a prática de obras santas. É preciso,
pois, que saibas aproveitar o tempo que Deus, em sua misericórdia, te concede,
e não esperes com a prática do bem até que seja tarde, no instante solene
quando te diz: Vamos, chegou o momento de deixar este mundo. Depressa! O que
está feito, está feito.
AFETOS E SÚPLICAS
Aqui me tendes, Senhor; sou aquela árvore que
há muitos anos merecia ouvir de vós estas
palavras: “Cortai-a, pois, para que debalde há de ocupar terreno?” (Lc 13,7).
Nada mais certo, porque, em tantos anos que estou no mundo, ainda não dei
frutos senão cardos e espinhos do pecado. Mas vós, Senhor, não quereis que
desespere. Dissestes a todos: aquele que me procurar, achar-me-á (Mt 7,7).
Procuro-vos, meu Deus, e quero receber vossa graça. Detesto, de todo o coração,
as ofensas que cometi e quisera morrer de dor por elas. No passado fugi de vós,
mas agora prefiro vossa amizade à posse de todos os reinos do mundo. Não quero
mais resistir ao vosso chamamento. Quereis-me todo para vós e sem reserva
entrego-me inteiramente. Na cruz, destes-vos todo a mim; todo me dou a vós.
Senhor, vós dissestes: “Se pedirdes alguma
coisa em meu nome, eu a darei” (Jo 14,14). Meu Jesus, confiado nessa grande
promessa, pelo vosso santo nome e pelos vossos méritos, peço a vossa graça e o
vosso amor. Fazei que deles se replete minha alma, onde antes morava 6 o
pecado. Agradeço-vos por me terdes inspirado o pensamento de dirigir- vos esta
oração, sinal evidente de que quereis ouvir-me. Ouvi-me, pois, meu Jesus! Concedei-me
grande amor por vós, dai-me um grande desejo de agradar-vos e depois a força de
cumpri-lo.
Ó Maria, minha excelsa intercessora,
escutai-me vós também e rogai a Jesus por mim!
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