Vida infeliz dos pecadores e vida
ditosa do que ama a Deus
Non est pax
impiis, dicit Dominus. Não
há paz para os ímpios, disse o Senhor (Is 58,24). Pax multa diligentibus legem
tuam. Muita paz para os que amam tua lei (Sl 118, 65).
PONTO I
Nesta vida, todos os homens se esforçam para
conseguir a paz. Trabalham o comerciante, o soldado, o advogado, porque pensam que,
realizando tal negócio, obtendo tal promoção, ganhando tal demanda, alcançarão
os favores da fortuna e poderão gozar da paz. Mas, ó pobres mundanos, que
procurais a paz no mundo, que não a pode dar! Deus somente no-la pode dar. Dá a
teus servos, — diz a Igreja em suas preces, — aquela paz que o mundo não pode
dar. Não, não pode o mundo com todos os seus bens satisfazer o coração humano,
porque o homem não foi criado para essa espécie de bens, mas unicamente para
Deus; de modo que somente em Deus pode encontrar felicidade e repouso.
O ser irracional, criado para gozos
materiais, procura e encontra a paz nos bens terrestres. Dai a um jumento um
feixe de capim, dai a um cão um pedaço de carne, e ficarão satisfeitos, sem
desejar mais coisa alguma. Mas a alma, criada para amar a Deus e unir-se a ele,
não encontra paz nos deleites sensuais; só Deus a pode fazer plenamente feliz.
Aquele rico de que fala São Lucas tinha
obtido de seus campos abundantíssima colheita, e dizia de si para consigo: “Minha
alma, agora possuis bens abundantes, armazenados para muitos anos; descansa,
come, bebe...” (Lc 12,19). Mas este rico infeliz foi chamado louco, e com toda
a razão, diz São Basílio. “Desgraçado — exclama o Santo. Acaso, te equiparas a
um animal e pretendes contentar tua alma com beber e comer e com os deleites
sensuais?’ O homem — escreve São Bernardo — poderá fartar-se, mas nunca
satisfazer-se com os bens do mundo. O próprio Santo, comentando este texto do
Evangelho: “Eis que abandonamos tudo” (Mt 19,27), diz que observou muitos
loucos com diversas manias. Todos — acrescenta — sofriam de fome devoradora;
mas uns se saciavam com terra, símbolo dos avarentos; outros, aspiravam o ar,
figura dos vaidosos; outros, ao redor da boca de uma fornalha, recebiam as
fugazes centelhas, imagem dos iracundos; aqueles, enfim, símbolo dos
desonestos, de um lago fétido bebiam suas águas corrompidas. E, dirigindo-se
depois a todos, exclama o Santo: “Ó insensatos, não vedes que todas estas
coisas, longe de extinguirem a fome, só a atiçam?’ Os bens do mundo são bens
aparentes, e, por isso, não podem satisfazer o coração humano (Ag 1, 6); assim
o avarento, quanto mais entesoura, mais quer entesourar, diz Santo Agostinho. O
impudico, quanto mais se engolfa nos prazeres de seu vício, maior desgosto e
cada vez mais terríveis desejos sente: e como é que poderia tranqüilizar-se seu
coração com a imundície sensual? O mesmo sucede ao ambicioso, que aspira
saciar-se com o fumo subtil de vaidades, poder e riquezas; porque o ambicioso atende
mais ao que lhe falta do que ao que possui.
Alexandre Magno, depois de ter conquistado tantos
reinos, lamenta-se por não ter adquirido o domínio das demais nações. Se os
bens da terra pudessem contentar o homem, os ricos e os monarcas seriam
plenamente felizes; mas a experiência prova o contrário. É o que afirma
Salomão, que assegura não ter negado nada a seus desejos (Ecl 2,10), e, contudo,
exclama: “Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade” (Ecl 1,2), o que quer dizer;
tudo quanto há no mundo é mera vaidade, mentira e loucura...
AFETOS E SÚPLICAS
Que me resta, meu Deus, das ofensas que vos
fiz, senão amarguras e penas e méritos para o inferno? Não me acabrunha a dor
que sinto, antes me consola e alivia, porque é um dom de vossa graça que se une
à esperança de que me quereis perdoar. O que me aflige é o muito que vos hei
injuriado, meu Redentor, que tanto me amastes. Merecia então, Senhor, que me
abandonásseis; em vez disso, vejo que me ofereceis o perdão e que sois o
primeiro a procurar a paz. Sim, meu Jesus, desejo a paz convosco, e mais que
todas as coisas, desejo a vossa graça. Arrependo-me, Bondade infinita, de vos
ter ofendido e quisera morrer de pura contrição. Pelo amor que tivestes comigo,
morrendo por mim na cruz, perdoai-me e acolhei-me em vosso coração; mudai o meu
de tal modo que, se muito vos ofendeu no passado, mais passe a vos agradar no
futuro. Renuncio, por vosso amor, a todos os prazeres que o mundo possa oferecer-me
e tomo a resolução de perder antes a vida do que vossa graça. Dizei-me o que
quereis que eu faça para servir- vos, pois que desejo executá-lo. Nada de
prazeres, nem de honras e riquezas; só amo a vós, meu Deus, meu gozo, minha
glória, meu tesouro, minha vida, meu amor e meu tudo. Socorrei-me, Senhor, para
que vos seja fiel; concedei-me o dom do vosso amor e fazei de mim o que vos
aprouver.
Maria, Mãe e esperança nossa depois de Jesus
Cristo, acolhei-me sob vossa proteção, e fazei que eu seja todo de Deus.
PONTO II
Além disso, disse Salomão que os bens do mundo
não apenas são vaidades que não satisfazem a alma, mas que são penas que
afligem o espírito (Ecl 1,14). Os pobres pecadores pretendem ser felizes
carregados de suas culpas, mas só encontram amarguras e remorsos (Sl 13,3).
Nada de paz, nem de tranqüilidade. Deus nos disse: “Não há paz para os ímpios”
(Is 48,22). Primeiramente, o pecado traz em si o temor profundo da vingança
divina; pois, assim como um homem, que tem um poderoso inimigo, não vive
tranqüilamente, como poderá o inimigo de Deus repousar em paz? “O caminho do
Senhor causa espanto para os que praticam o mal” (Pr 10,29). Quando a terra
treme ou o trovão ribomba, como estremece aquele que se acha em pecado! Até o
suave movimento da folhagem, às vezes, lhe causa pavor: “O zunido do terror
amedronta constantemente os seus ouvidos” (Jo 15,21). Foge sem ver quem o
persegue (Pr 28,1), porque seu próprio pecado corre empós dele. Caim matou seu
irmão Abel e exclamou logo:
“Todo aquele que me encontrar me matará” (Gn
4,14). E não obstante o Senhor lhe ter assegurado que nada lhe aconteceria (Gn
4,15), — diz a Escritura, — Caim andou sempre fugitivo e errante (Gn 4,16).
Quem era o perseguidor de Caim, senão o seu pecado? Além disso, a culpa anda
sempre acompanhada do remorso, esse verme roedor que jamais repousa. Dirija-se,
embora, o pobre pecador a banquetes, saraus e teatros, a voz da consciência o acompanha
e lhe diz: Estás no desafeto de Deus; se morreres, para onde é que irás? O
remorso é pena tão angustiosa, mesmo nesta vida, que alguns desgraçados, para
se livrar de seu peso, suicidam-se. Um desses foi Judas que, como é sabido,
desesperado, se enforcou. Conta-se de outro criminoso que, tendo assassinado
uma criança, sentiu remorsos tão horríveis, que para acalmá-los se fez
religioso; mas nem no claustro encontrou a paz. Foi ter com o juiz e
declarou-lhe o seu delito, pelo qual foi condenado à morte.
Que é a alma privada de Deus?... Um mar tempestuoso,
— diz o Espírito Santo (Is 57,20). Se alguém fosse convidado a uma festa, baile
ou concerto, e ali lhe tivessem atado mãos e pés com ligaduras: poderia
desfrutar daquela diversão? Tal é a situação do homem que vive na abundância
dos bens do mundo sem possuir a Deus. Coma, beba, dance, ostente ricos
vestidos, receba honras, ocupe altos cargos e adquira dignidades, mas jamais
gozará paz. A paz vem unicamente de Deus e Deus a dá àqueles que o amam; não a
seus inimigos.
Os bens deste mundo — diz São Vicente Ferrer
— são todos exteriores, não entram no coração. Aquele pecador ostenta, talvez,
vestidos bordados e anéis de diamantes, tem mesa esplêndida; mas o seu pobre
coração se conservará cheio de espinhos e de fel. Vê-lo-eis, por isso, sempre
inquieto, mesmo no meio de tantas riquezas, prazeres e divertimentos. À menor
contrariedade se impacienta e se enfurece como um cão hidrófobo. Aquele que ama
a Deus, se resigna e se conforma à vontade divina na adversidade e encontra paz
e consolo. Isto, porém, não pode fazer aquele que é inimigo da vontade de Deus.
E por isso não encontra meio de tranquilizar-se.
Este desgraçado serve ao demônio, tirano
cruel, que lhe paga com aflições e amarguras. Cumpre-se deste modo a palavra do
Senhor, que diz: “Porquanto não serviste com gozo ao Senhor teu Deus, servirás
a teu inimigo com fome, com sede, com nudez e com toda espécie de miséria” (Dt
28,47-48). Quanto não sofre o vingativo, depois de se ter vingado! quanto o
impudico, apenas tenha conseguido seus intuitos! quanto os ambiciosos e
avarentos!... Quantos seriam santos, se sofressem por causa de Deus o que padecem
para se condenarem!
AFETOS E SÚPLICAS
Ó tempo que perdi!... Senhor, quantos merecimentos
para a glória teria eu agora acumulado, se houvesse sofrido em servir-vos as
aflições e trabalhos que padeci, ofendendo-vos. Ah! meu Deus, por que vos
abandonei e perdi vossa graça?... Por prazeres envenenados e fugitivos que,
apenas desfrutados, desapareceram e me deixaram o coração cheio de feridas e de
angústias... Pecados meus! maldigo-vos e detesto-vos mil vezes; assim como
bendigo vossa misericórdia, Senhor, que com tamanha paciência me tem sofrido.
Amo-vos, meu Criador e Redentor, que por mim destes a vida. E, por isso, vos
amo, arrependo-me de todo o coração de vos ter ofendido... Meu Deus, meu Deus,
por que vos perdi? Por que vos substituí? Agora reconheço o mal que pratiquei,
e estou resolvido a perder tudo, inclusive a própria vida, do que perder vosso amor.
Padre Eterno, iluminai-me pelo amor de Jesus Cristo.
Fazei-me conhecer o bem infinito, que sois
vós, e a vileza dos bens que me oferece o demônio para me fazer perder a vossa
graça. Amo-vos e desejo amar-vos cada vez mais. Fazei que vós sejais meu único
pensamento, meu único desejo, meu único amor. Espero tudo da vossa bondade
pelos merecimentos de vosso Filho...
Maria, nossa Mãe, pelo amor que tendes a
Jesus Cristo, peço-vos que me alcanceis luz e força para servir-vos e amar-vos
até à morte.
PONTO III
Se todos os bens e prazeres do mundo não podem
satisfazer o coração humano, quem o poderá contentar?... Só Deus (Sl 36,4). O
coração humano anda sempre à procura de bens que o possam saciar.
Alcança riquezas, honras ou prazeres, mas não
se satisfaz, porque tais bens são finitos e ele foi criado para o bem infinito.
Quando, porém, encontra Deus e se une a ele, se aquieta, acha consolo e não
deseja nada mais. Santo Agostinho, enquanto se ateve à vida sensual, jamais
gozou de paz; mas, quando passou a entregar-se a Deus, fez esta confissão ao
Senhor: “Meu Deus, vejo agora que tudo é dor e vaidade, e que só vós sois a
verdadeira paz da alma”. Feito assim mestre por experiência própria, escrevia:
Que procuras, homem? procuras bens?...
Procura o único Bem, no qual se encerram todos
os demais” (Sl 41,3).
Depois de ter pecado, o rei David
entregava-se à caça, distraía-se nos seus jardins e em banquetes, gozava de
todos os prazeres de um monarca.
Mas as festas, as florestas e as demais
criaturas em que ele se comprazia, não faziam senão dizer-lhe a seu modo:
“David, queres encontrar em nós paz e satisfação? Não te podemos contentar...
Procura teu Deus (Ibid), pois que unicamente ele te pode satisfazer”. Por essa
razão, David gemia no meio de seus prazeres, e exclamava: “Minhas lágrimas me
têm servido de alimento dia e noite, e me dizem dia-a-dia: Onde está teu Deus?’
Como sabe Deus, ao contrário, contentar as almas fiéis que o amam! São
Francisco de Assis, que abandonou tudo por causa de Deus, achava-se descalço,
meio morto de frio e de fome, coberto de farrapos, mas, só ao proferir as
palavras “Meu Deus e meu tudo”, já sentia gozo inefável e celestial. São
Francisco de Bórgia que, durante suas viagens de religioso, muitas vezes, teve
de pernoitar sobre um monte de palha, experimentava tamanha consolação que o
privava de dormir. Da mesma maneira, São Filipe Néri, despojado e livre de
todas as coisas, não conseguia repousar à vista dos consolos que Deus lhe dava,
em tal escala, que dizia: “Deixai-me descansar, meu Jesus”. O padre jesuíta
Carlos de Lorena, da família dos príncipes de Lorena, punha-se, às vezes, a
dançar de alegria, quando entrava em sua pobre cela. Nas Índias, São Francisco
Xavier, no meio de seus trabalhos apostólicos, descobria o peito, exclamando:
Basta, Senhor, de consolações, que meu coração já não as suporta. Santa Teresa
dizia que dá mais contentamento uma gota de celestial consolação, que todos os
prazeres do mundo. Efetivamente, não podem faltar as promessas do Senhor, que
ofereceu dar, ainda nesta vida, aos que renunciam por seu amor aos bens da
terra, o cêntuplo de paz e de alegria (Mt 19,29).
Que andamos, pois, a procurar tanto? Procuremos
a Jesus Cristo, que nos chama e diz: “Vinde a mim todos os que estais
carregados e fatigados e eu vos aliviarei” (Mt 11,28). A alma que ama a Deus,
encontra essa paz que excede todos os prazeres e todas as satisfações que podem
vir do mundo e dos sentidos (Fp 4,7). É verdade que nesta vida até os santos
têm que sofrer; porque a terra é lugar para merecimentos e não se pode merecer
sem sofrer. Diz, contudo, São Boaventura, que o amor divino é semelhante ao mel
que torna doces e agradáveis as coisas mais amargas. Quem ama a Deus, ama sua
divina vontade, e é por isso que goza espiritualmente nas próprias tribulações,
porque sabe que, resignando-se, agrada e compraz ao Senhor... Ó meu Deus! Os
pecadores desprezam a vida espiritual sem tê-la experimentado. Vêem somente,
diz São Bernardo, as mortificações que sofrem os amigos de Deus e os deleites
de que se privam; mas não consideram as inefáveis delícias espirituais com que
o Senhor nos cumula e acaricia. Ah! se os pecadores provassem a paz de que
desfruta a alma que só ama a Deus! “Experimentai e vede — diz David — quão
suave é o Senhor” (Sl 33,9).
Começa, pois, meu irmão, a fazer meditação
diária, a comungar com freqüência, a visitar devotamente o Santíssimo
Sacramento; começa a desprezar o mundo e a entregar-te a Deus, e verás como o
Senhor te dá, no pouco tempo que lhe consagras, maiores consolações que todas
as que o mundo te deu com os seus prazeres. Provai e vereis.
Quem não experimentar, não poderá compreender
o quanto Deus sabe contentar uma alma que o ama.
AFETOS E SÚPLICAS
Meu amantíssimo Redentor, quanto fui cego ao
apartar-me de vós, Sumo Bem, Fonte de todo consolo, entregando-me aos pobres e
miseráveis prazeres do mundo! Minha cegueira assombra-me; porém mais ainda
vossa misericórdia, que com tanta bondade me tem suportado.
Agradeço-vos de todo o coração por me terdes
feito conhecer meu triste estado e o dever que me impele a amar-vos cada vez
mais. Aumentai em mim o desejo e o amor... Fazei, ó Amabilidade infinita, que,
enlevado eu de vós, considere que nada mais tendes a fazer para ser amado por
mim e que desejais o meu amor. Se quiserdes, podereis purificar-me (Mt 8,8).
Purificai, pois, meu coração, caríssimo Redentor; purificai-o de tantos afetos
impuros que me não deixam amar-vos como quisera.
Não conseguem minhas forças que meu coração
se una inteiramente a vós e a vós somente ame. Deve ser este um efeito de vossa
graça, para a qual nada há de impossível. Desligai-me de tudo; arrancai-me de
minha alma tudo o que não conduz a vós, e fazei que seja inteiramente vosso.
Arrependo-me de todas as ofensas que vos fiz e proponho consagrar o restante da
minha vida ao vosso santo amor. Vós, porém, o haveis de realizar. Fazei-o pelo
sangue que derramastes por mim com tanto amor e dor. Seja para glória da vossa
onipotência que meu coração, outrora cativo de afeições terrenas, arda
doravante em amor por vós, ó Bondade infinita!...
Mãe do belo amor! Alcançai que, por meio de
vossas súplicas, minha alma se abrase, como a vossa, em caridade para com Deus.
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