Dos mau hábitos
Impius, cum in profundum venerit peccatorum,
contemnit. O ímpio, depois de ter caído no abismo dos pecados, tudo despreza
(Pr 18,3).
PONTO I
Uma das maiores desventuras que nos legou a
culpa de Adão é a nossa propensão ao pecado. Dela se lamenta o Apóstolo,
sentindo-se levado pela concupiscência ao próprio mal que aborrecia: “Veio
outra lei a meus membros que... me leva preso à lei do pecado” (Rm 8,25).
Resulta daí que nós, infeccionados de tal concupiscência e cercados de tantos
inimigos que nos incitam ao mal, dificilmente chegaremos sem culpa à glória.
Reconhecida, pois, esta fragilidade a que estamos sujeitos, pergunto eu: “Que
dirias de um viajante que, devendo atravessar o mar durante forte tempestade e
num barco meio avariado, quisesse carregá-lo com tal peso que, mesmo que não
houvesse tempestade e ainda que o navio fosse de construção resistente,
bastaria para fazê-lo soçobrar?... Que prognóstico formarias sobre a vida deste
viajante? Pois pensa o mesmo do indivíduo de maus hábitos e costumes, que deve
cruzar o mar tempestuoso da vida, em que tantos naufragam, num barco frágil e
avariado, como é nosso corpo no qual viaja a alma. Que sucederá se o
carregarmos ainda com o peso irresistível dos pecados habituais? É difícil que
tais pecadores se salvem, porque os maus hábitos cegam o espírito, endurecem o
coração e ocasionam provavelmente a obstinação completa na hora da morte.
Primeiramente, o mau hábito nos cega. Qual o
motivo que fazia os Santos implorar incessantemente a luz divina, temendo
converter-se nos pecadores mais abomináveis do mundo? É porque sabiam que, se
chegassem a perder a luz divina, poderiam cometer culpas horrendas.
E como se explica que tantos cristãos vivem
obstinadamente em pecados, até que irremediavelmente se condenam? Porque o
pecado 69 os cega, e por isso se perdem (Sb 2,21). Toda culpa traz consigo
cegueira e, acumulando-se os pecados, agrava-se a cegueira do pecador.
Deus é nossa luz; quanto mais se afasta a
alma de Deus, tanto mais se mergulha nas trevas. “Seus ossos se encherão de
vícios” (Jo 20,11).
Assim como o sol não pode penetrar através de
um vaso cheio de terra, assim não pode entrar a luz divina num coração cheio de
vícios. Vemos, por isso, com freqüência, muitos pecadores, sem luz que os guie,
a cair de pecado em pecado e sem que procurem emendar-se (Sl 11,9). Caídos
esses infelizes no abismo de trevas, só sabem pecar e falar em pecados; não
pensam mais que em pecar e já não consideram sequer o grave mal que é o pecado.
“O costume de pecar — diz Santo Agostinho — não deixa o pecador reconhecer o mal
que pratica”. Vivem desta maneira como se não acreditassem na existência de
Deus, do céu, do inferno e da eternidade.
Acontece que o pecado, que ao princípio
causava horror, por efeito do mau hábito, já não repugna. “Agita-os como uma
roda, e como uma palhinha diante do soprar do vento” (Sl 82,14). Vede — diz São
Gregório — a facilidade com que é levantada uma palha pela brisa mais suave;
assim também veremos muitos que antes da queda resistiam, ao menos por algum
tempo, e combatiam até contra as tentações, mas agora, contraído o mau hábito, sucumbem
a qualquer tentação, em toda ocasião de pecar que se apresente. E por quê?
Porque o mau hábito os privou da luz. Diz Santo Anselmo que o demônio procede
com certos pecadores como aquele que tem um passarinho preso por um cordel.
Ele o deixa voar, mas, quando quer, o faz
cair por terra. Tal semelhança — afirma o Santo — é aplicável àqueles que são
dominados pelo mau hábito1. Alguns há, acrescenta São Bernardino de Sena, que
pecam sem que a ocasião se apresente. Compara-os este grande Santo aos moinhos
de vento que qualquer aragem faz girar2 e que continuam em movimento mesmo que
não haja grão para moer, e, às vezes, até rodam contra a vontade do dono. Estes
pecadores, observa São João Crisóstomo, vão forjando maus pensamentos, sem
ocasião, sem prazer, quase contra sua vontade, tiranizados pela força do mau
hábito.
Porque, segundo disse Santo Agostinho, o mau
hábito se converte logo em necessidade. O costume, segundo nota São Bernardo,
se muda em natureza. Daqui se segue que, assim como ao homem é necessário
respirar, assim parece que o pecado se torna necessário para aqueles que
habitualmente pecam e se fazem escravos do demônio.
Disse escravos, porque os criados trabalham
por seu salário; mas os escravos servem à força, sem paga de espécie alguma.
Nisto caem alguns desgraçados: chegam a pecar sem prazer nem desejo.
“O ímpio, depois de ter caído no abismo dos
pecados, tudo despreza” (Pr 18,3). São João Crisóstomo aplica estas palavras ao
pecador obstinado nos maus hábitos, que, mergulhado naquele abismo tenebroso,
despreza a correção, os sermões, as censuras, o inferno e até Deus. Menospreza
tudo e se torna semelhante ao abutre voraz que, longe de fugir do cadáver em
que se repasta, prefere que os caçadores o matem. Refere o padre Recúpito, que
um condenado à morte, indo para o cadafalso, levantou os olhos e, vendo uma
donzela formosa, consentiu logo num mau pensamento. O Padre Gisolfo conta que
um blasfemo, também condenado à morte, proferiu uma blasfêmia no mesmo momento
em que o verdugo o lançava na escada para enforcá-lo.
Com razão, pois, nos diz São Bernardo que é
inútil, em geral, rezar pelos pecadores por hábito e que é melhor pranteá-los
como condenados.
Como é que eles houveram de sair do
precipício em que se lançaram, se perderam a vista? Seria necessário um milagre
da graça. Abrirão os olhos no inferno, quando o reconhecimento de sua desgraça
só lhes dá de servir para chorar mais amargamente a sua loucura.
AFETOS E SÚPLICAS
Haveis prodigalizado, meu Senhor e Deus, os
vossos benefícios, favorecendo-me mais que a outros, e eu, em compensação, vos
cumulei de ofensas, injuriando-vos mais que todos... Ó querido Coração do meu
Redentor, que tão afligido e atormentado fostes na cruz pela perversidade de minhas
culpas: concedei-me, por vossos merecimentos, profundo conhecimento e viva dor
dos meus pecados... Ah, meu Jesus! estou cheio de vícios, mas vós sois
onipotente e podeis encher minha alma do vosso santo amor. Em vós, portanto,
confio, porque sois a bondade e misericórdia infinitas. Arrependo-me, soberano
Bem, de vos ter ofendido e quisera ter morrido antes de pecar. Esqueci-me de
vós, mas vós não me esquecestes; reconheço-o pela luz com que agora iluminais
minha alma. Já que me dais essa luz divina, concedei-me também força para
servir-vos fielmente. Prefiro a morte a separar-me de vós, e ponho em vosso
auxílio todas as minhas esperanças. In te, Domine, speravi, non confundar in
aeternum. Em vós espero, Jesus meu, que não hei de ver-me outra vez na confusão
da culpa e privado da vossa graça. A vós também me recomendo, ó Maria, nossa
Mãe. In te, Domina, speravi, non confundar in aeternum. Por vossa intercessão
confio, ó esperança nossa, nunca mais me ver na inimizade do vosso divino
Filho. Rogai-lhe que antes me envie a morte que permitir tamanha desgraça.
PONTO II
Os maus hábitos, além disso, endurecem o coração,
permitindo-o Deus justamente em castigo da resistência que se opõe a seus
convites.
Diz o Apóstolo que o Senhor “tem misericórdia
de quem quer, e endurece a quem quer” (Rm 9,18). Santo Agostinho explica este
texto6, dizendo que Deus não endurece de um modo imediato o coração daquele que
peca habitualmente, mas que o priva da graça em castigo da ingratidão e
obstinação com que repeliu a que antes lhe havia concedido; e em tal estado o
coração do pecador se endurece como se fosse de pedra.
Seu coração se endurecerá como pedra, e se apertará
como a bigorna do ferreiro (Jo 41,15). Sucede assim que, enquanto alguns se
enternecem e choram ao ouvir falar do rigor do juízo divino, das penas dos
condenados e da Paixão de Cristo, os pecadores por hábito nem sequer se
comovem. Falam e ouvem falar destas coisas com indiferença, como se disso não
se importassem: e por causa destes golpes do mau costume, a consciência se
endurece cada vez mais (Jo 41,15).
Por conseguinte, nem as mortes repentinas,
nem os tormentos, trovões e raios, são capazes de atemorizá-los e fazê-los voltar
a si. Ao contrário, mergulharão cada vez mais profundamente no sono da morte em
que, perdidos, repousam (Sl 85,7). O mau hábito sufoca, pouco a pouco, o
remorso da consciência de tal modo, que ao pecador habitual os pecados mais
enormes não passem de coisas sem importância (Santo Agostinho). Perdem pecando,
diz São Jerôni-mo7, até essa vergonha que a ação culposa traz consigo
naturalmente. São Pedro compara-os ao suíno que se revolve no lamaçal (2Pd
2,22), pois assim como este animal imundo não percebe o fétido da estrumeira em
que se revolve, assim aqueles pecadores são os únicos insensíveis à hediondez
de suas culpas, que todas as outras pessoas percebem e detestam. E se este
lodaçal lhes tira até a faculdade da visão, é, porventura, para admirar — diz
São Bernardino — que não voltem a si, nem quando os açoita a mão de Deus. Daí
resulta que, em vez de se afligir com os seus pecados, ainda se regozijam, se
riem e se vangloriam deles (Pr 2,14).
Que indicam estes sinais de diabólica dureza?
— pergunta São Tomás de Vila Nova. São todos sinais de eterna condenação. Teme,
pois, meu irmão, que não te suceda esta desgraça. Se tens algum mau hábito,
procura libertar-te agora que Deus te chama. Enquanto sentes mossa na
consciência, regozija-te, porque é indício de que Deus ainda não te abandonou.
Urge, porém, corrigir-te e sair o mais breve possível desse estado, doutra
maneira gangrenar-se-á a ferida e te verás perdido.
AFETOS E SÚPLICAS
Como poderei, Senhor, agradecer-vos devidamente
todas as graças que me haveis concedido? Quantas vezes me tendes chamado, e eu
resistido! Em lugar de servir-vos e amar-vos, por me terdes livrado do inferno e
chamado com tanto amor, continuei a provocar vossa indignação e corresponder
com ofensas. Não, meu Deus, não; muitas vezes vos tenho ofendido, não quero
ultrajar mais a vossa paciência. Só vós, que sois a Bondade infinita, pudestes suportar-me
até agora. Mas reconheço que, com jus-ta razão, não podereis continuar a
suportar-me.
Perdoai-me, pois, meu Senhor e Sumo Bem, todas
as ofensas que vos fiz. De todo o coração me arrependo e proponho não tornar a
injuriar-vos...
Porventura, hei de continuar a
ofender-vos?... Aplacai-vos, portanto, Deus de minha alma, não pelos meus
merecimentos, que somente valem para o castigo eterno, mas pelos merecimentos
do vosso Filho, meu Redentor, nos quais deposito minha esperança. Pelo amor de
Jesus Cristo, recebei-me na vossa graça e dai-me a perseverança no vosso amor.
Desprendei-me dos afetos impuros e atraí-me inteiramente a vós. Amo-vos,
soberano Senhor, excelso, amante das almas, digno de infinito amor... Oh, se
vos tivesse amado sempre!...
Maria, nossa Mãe, fazei que não empregue o
restante da minha vida em ofender vosso divino Filho, mas somente em amá-lo e
chorar os pecados que hei cometido.
PONTO III
Privado da luz que nos guia e endurecido o
coração, que admira que o pecador tenha mau fim e morra obstinado em suas
culpas? (Ecl 3,27). Os justos andam sempre pelo caminho reto (Is 26,7). Ao contrário,
aqueles que pecam habitualmente caminham sempre em linhas tortuosas (Sl 11,9).
Se deixam o pecado por algum tempo, voltam de novo a ele; pelo que São Bernardo
os ameaça com a condenação. Talvez algum deles queira emendar-se antes que lhe
chegue a morte. Mas é precisamente nisto que está a dificuldade: o pecador por
hábito, ainda que chegue à velhice, não se emenda. “O homem, segundo o caminho
que tomou sendo jovem, — diz o Espírito Santo — não se afastará dele, mesmo
quando for velho (Pr 22,6). A razão é que — diz São Tomás de Vilanova — nossas
forças são muito débeis10, e, portanto, a alma privada da graça não pode
abster-se de novos pecados. Além disso, não seria grande loucura se nos
propuséssemos jogar e perder voluntariamente todos os nossos haveres, esperando
reavê-los na última partida? Não é menor a necessidade de quem vive em pecado e
espera reparar tudo no derradeiro instante da vida. Pode, porventura, o etíope
mudar a cor de sua pele, ou o leopardo as suas malhas? Tampouco poderá levar
vida religiosa aquele que tem costumes perversos e inveterados (Jr 13,23),
senão que, por fim, se entregará ao desespero e acabará desastrosamente os seus
dias (Pr 28,14).
Comentando São Gregório o seguinte texto do
livro de Jó: “Abriu-me chaga sobre chaga; caiu sobre mim como um gigante” (Jo
16,15), disse: Se alguém se vê assaltado por inimigos, mesmo que receba uma
ferida, ainda poderá continuar a defender-se; mas se outra e mais vezes o
ferirem, irá perdendo as forças, até que, afinal, cai desfalecido.
Assim acontece com o pecado. Depois da primeira
ou da segunda queda, resta ainda alguma força ao pecador (assistido sempre por
meio da graça); mas, se continuar pecando, o pecado se converte em gi-gante11;
enquanto o pecador, ao contrário, cada vez mais fraco e coberto de feridas, não
pode evitar a morte. Jeremias compara o pecado a uma grande pedra que oprime a
alma (Lm 3,53); e tão difícil é — acrescenta São Bernardo — converte-se quem
habitualmente peca, como ao homem sepultado debaixo de enormes pedras e
destituído de forças para movê-las, é o livrar-se do peso que o esmaga.
Estou, portanto, condenado e sem esperança? —
perguntará, talvez, algum destes infelizes pecadores... Não, se deveras
quiseres emendar- te. Mas os males gravíssimos requerem remédios heróicos. Fala-se
a um doente em perigo de vida, e se não quer tomar medicamentos, porque ignora
a gravidade da moléstia, o médico lhe diz que, se não usar o remédio receitado,
morrerá indubitavelmente. Que responderá o enfermo? “Estou pronto a obedecer em
tudo... Disso depende a minha vida”. Meu irmão, a mesma coisa hás de fazer. Se
incorres habitualmente em qualquer pecado, estás enfermo e atacado daquele mal
que, segundo diz São Tomás de Vilanova, raras vezes se cura. Achas-te em grande
risco de condenação. Se quiseres, entretanto, curar-te, eis aqui o remédio. Não
deves esperar um milagre da graça. Impende evitar resolutamente as ocasiões
perigosas, fugir das más companhias e resistir às tentações, recomendando-te a
Deus. É preciso que te confesses a miúdo, que faças cada dia leitura espiritual
e te entregues à devoção da Virgem Santíssima, pedindo-lhe continuamente que te
alcance forças para não recair. É necessário que te domines e empregues violência.
Do contrário incorrerás na ameaça do Senhor:
Morrereis em vosso pecado (Jo 8,21). Se não aplicares agora o remédio, quando
Deus te ilumina, mais tarde dificilmente poderás remediá-lo. Ouve a voz do
Senhor que te diz como a Lázaro: “Vem para fora”. Pobre pecador já morto! Sai
do sepulcro de tua má vida. Responde depressa e entrega-te a Deus. Teme que não
seja este o último apelo que te faz.
AFETOS E SÚPLICAS
Hei de esperar, ó meu Deus, que me abandoneis
e condeneis ao inferno? Ó Senhor, esperai por mim; quero mudar de vida e
entregar-me a vós. Dizei-me o que devo fazer, pois quero pô-lo em prática...
Sangue de Jesus Cristo, ajudai-me! Virgem Maria, advogada dos pecadores,
socorrei-me! E vós, Padre Eterno, pelos merecimentos de Jesus e Maria, tende
misericórdia de mim! Arrependo-me, ó Deus de infinita bondade, de vos ter
ofendido e amo-vos sobre todas as coisas. Perdoai-me, por amor de Cristo, e
concedei-me o dom do vosso amor. Inspirai-me também grande temor de minha
condenação eterna, se viesse a ofender-vos de novo. Dai-me, meu Deus, luz e força,
que tudo espero da vossa misericórdia. Já que tantas graças me outorgastes
quando vivia afastado de vós, muitas mais espero agora, quando volto ao vosso
seio, resolvido a que sejais meu único amor. Amo-vos, meu Deus, minha vida e
meu tudo! Amo-vos também, Maria, nossa Mãe. Em vossas mãos encomendo minha alma
para que, por vossa intercessão, a preserveis de cair na desgraça do desafeto
de Deus.
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